A Festa (2)

Notas Litúrgicas D) Tudo o que se disse no artigo anterior pressupõe a sua realização com um certo ritualismo. À festa pertence sempre um ritual: certas estruturas mais ou menos fixas, herdadas ou inventadas, gestos, símbolos: certas «regras de jogo» que dão à celebração um ar de tradição e de solenidade, ao mesmo tempo que de acontecimento espontâneo. Estes ritos têm sempre algo de sagrado: são ritos simbólicos que exprimem os conteúdos da celebração e que unem a comunidade com a sua linguagem comunicativa à volta de valores mais ou menos transcendentes, mas que os seus membros consideram básicos.

E) A festa está em ímtima relação com o tempo. É uma celebração num tempo determinado (hoje), mas com uma memória viva do passado (ontem) e uma projecção de esperança em relação ao futuro (amanhã). A dinâmica festiva funda-se basicamente num acontecimento passado, recente ou remoto, mítico ou histórico, mas que é visto como constituinte pelo grupo que o celebra. O chamado «eterno retorno dos mitos ou dos deuses» tem a sua tradução tanto nos acontecimentos familiares como nas recordações festivas de uma colectividade ou nas celebrações sacramentais cristãs.

Mas este acontecimento compreende-se na festa como algo presente e actual: o que celebra o seu aniversário natalício ou o aniversário de casamento, o que está a celebrar, sobretudo, é a vida que continua a ter e o amor que persevera. É a tensão dinâmica entre o semel (semelhante) do acontecimento e o hodie (hoje) da celebração memorial. É a força da re-presencialização do facto originante, chave comum à festa pascal judaica, às celebrações mistéricas pagãs, aos sacramentos cristãos e também a toda a festa familiar. Uma memória que não só olha o passado, mas que é entendida como uma re-criação continuada no seio da comunidade. Ao mesmo tempo, a festa lança um olhar para o futuro. Projecta a recordação para o amanhã; a memória torna-se esperança e profecia. No fundo, o que se celebra é um valor (vida, amor, felicidade, vitória, liberdade…) que, de alguma maneira, é sempre imcompleto e utópico. O projecto ideal do grupo tem muito de processo de conquista e de caminho. A festa, no hoje, une o tempo passado e o futuro, dando um sentido global à vida e um carácter quase-sagrado ao transcorrer do tempo, escapando por um momento do seu fluir monótono para lhe dar maior consciência e profundidade.

E) A festa celebra-se sempre em chave de comunhão com uns valores. Não consiste só em deixar de trabalhar (também o reformado e o grevista deixam de trabalhar e nem por isso estão em festa). A festa faz sair de uma determinada ordem de valores para introduzir noutra na qual também se acredita. Só celebra o que acredita em algo e com alguém. A festa é um «sim» a valores que normalmente estão só implícitos na consciência e que em determinadas datas se tornam explícitos e se celebram. Podem ser cósmicos (à volta das estações do ano ou dos acontecimentos agrícolas), familiares, sociais ou religiosos: mas sempre vistos como paradigmáticos e fundamentais para o grupo. A festa faz que a comunidade se identifique com o acontecimento e o que ele significa, por meio do clima criado e do ritual simbólico. A festa é um reencontro consigo mesmo, com os outros, com a natureza, com a vida. No clima religioso é um reencontro também com Deus e com os grandes acontecimentos da salvação.

F) Por tudo isso, a festa tem uma força globalizante e unificadora dos diversos níveis da vida humana. Afecta o homem todo, não só a sua inteligência ou as suas opções de vontade: engloba o homem num clima afectivo e emocional. Relaciona-o dinamicamente com a natureza e com o grupo a que pertence e que partilha com ele a celebração. Reúne num momento privilegiado da celebração o passado e o futuro. Num presente que muitas vezes não é precisamente rico em motivos de alegria, a festa faz que, por uma opção optimista e uma contestação implícita ou explícita contra o mal, a celebração resulte em sinal profético de esperança e primícias de metas desejadas.

A festa é um ponto de referência e de condensação recriativa de todos os melhores valores do homem e da colectividade, tanto os meramente profanos como os religiosos e cristãos. A festa ajuda a aprofundar o sentido da própria vida para a relançar e projectar, valorizando mais o «ser» que o «ter» ou o «produzir». A festa tem uma carga inegável de libertação: não tanto liberta «de» (embora ajude a escapar ao ritmo opressivo do trabalho ou à tensão angustiosa da vida) mas «para», porque introduz em comunhão com os valores mais originários de felicidade e de salvação. A festa regenera as energias para a tarefa de luta que sempre está à espera do homem, a qualquer dos níveis e desejos que exprimem as suas várias metas. Toda a festa supões de algum modo uma vitória contra o que não queremos: «o mal está vencido», parece o grito de toda a festa, humana ou religiosa. Uma vitória sobre a morte e a escravidão, em favor da vida e da liberdade.

SDPL