Aborto: Entre o direito e o torto

Pensar a vida Abrindo o catálogo de direitos, liberdades e garantias (Constituição da República Portuguesa, art. 24.º), o direito à vida revela-se cada vez mais ameaçado. A bandeira das bandeiras continua a ser, entre nós, a reivindicação da descriminalização do aborto, nas primeiras semanas da gravidez, acolhendo-se como prazo, na pergunta referendária, as dez semanas. Na impossibilidade de analisar pormenorizadamente os argumentos, limitamo-nos a registar algumas falácias, a saber: a da privatização da questão, a do corte temporal, a da ineficácia da lei penal e da perversidade, quanto aos efeitos, da lei.

A primeira – falácia da privatização – considera que, em matéria de vida intra-uterina, estamos no domínio da autonomia privada, sendo ilegítima a intervenção do legislador; importaria, além disso, acabar com a imposição de visões não partilhadas – no limite, resquícios de uma visão judaico-cristã, desadequada numa sociedade que acolhe o princípio da separação entre Estado e igrejas (art. 41.º/4 CRP). Contudo, uma das questões fundamentais ao nível de cada comunidade política consiste em saber quem deve ser reconhecido como digno de respeito e protecção, sendo certo que já não é sustentável a ideia de que a vida intra-uterina é apenas mera parte do corpo da mulher (viscera matris). Acresce que a tese da imposição de crenças religiosas confunde “contexto da descoberta” e “contexto da fundamentação”. Ou seja: se o cristianismo contribuiu, de uma forma inigualável, para o reconhecimento do valor da vida e da dignidade do ser humano, nem por isso a defesa da vida é monopólio de igrejas, correspondendo a um elemento essencial da nossa matriz civilizacional e sendo passível de uma fundamentação não religiosa.

A falácia do corte temporal resume-se deste modo: se, com a fertilização, estamos perante um novo organismo, capaz de desenvolvimento, que mudança qualitativa acontece para justificar um tratamento diferenciado entre a vida intra-uterina até às 10 semanas e a mesma vida a partir daí? Na verdade, nenhuma!

A falácia da ineficácia da lei penal traduz-se na ideia de que a criminalização não produz efeitos do ponto de vista da tutela do bem jurídico em causa. Contudo, o facto da maior parte dos abortos permanecer ignorada não significa que a lei seja totalmente ineficaz, nem é, por si só, razão para a descriminalização dessas condutas. Com efeito, a solução consagrada no Código Penal tem algum efeito dissuasório: o desaparecimento da ilicitude da conduta abortiva leva, em regra, a alargar o círculo de pessoas dispostas a abortar.

A falácia da perversidade da lei, quanto aos efeitos, assenta, entre outras, na ideia de que a lei: a) é discriminatória, ao atingir os (especialmente, as) mais pobres, que não têm meios para se deslocar ao estrangeiro, e, fundamentalmente, as mulheres; b) é humilhante, ao submeter a julgamento mulheres que passaram por dramas pessoais e familiares; c) é efectiva e literalmente penosa, ao enviar as mulheres para a cadeia.

Sinteticamente, diríamos que: a) a valer este argumento, em bom rigor, o facto de um país permitir certas condutas (v.g., a proibição do trabalho infantil) deveria levar-nos a adoptar a mesma solução; b) não sendo agradável e tendo, em princípio, um impacto negativo para os arguidos, um julgamento não é, em sentido próprio, um tratamento cruel, degradante e desumano; na prática, o fervor militante dos adeptos da descriminalização tem contribuído decisivamente para uma exposição mediática das pessoas envolvidas; c) a ter vencimento a solução descriminalizadora, o problema continuará a pôr-se passadas as 10 semanas; aliás, essas situações, em regra, são mais dramáticas; como outros crimes (por exemplo, condução sem carta), a possibilidade de ser condenada em prisão efectiva é excepcional, sendo a própria pena de prisão considerada, na nossa ordem jurídica, um último recurso.

Em suma: tomar a sério a tutela da vida intra-uterina passa por nos opormos, com a força dos argumentos, à pretensão voluntarista que constrói o estatuto do nascituro, ao menos nas primeiras semanas, em função do desejo: caso se assuma a maternidade, estamos perante um bebé; se se recusa, o mesmíssimo ser humano é degradado a um “monte de células”, abrindo-se caminho ao aborto.

João Carlos Loureiro

João Carlos Loureiro é professor na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e escreve a convite da ADAV/Aveiro.

Associação de Defesa e Apoio da Vida/Aveiro. Tel. 234 424 040