Como nasceu o mundo em que vivemos

Hereges e Heróis
Thomas Cahill
Temas e Debates / Círculo de Leitores
360 páginas
24,40 euros

 

 

“Hereges e Heróis” é um daqueles livros que pretendem pintar o grande quadro de uma época, um quadro completo, exaustivo, no caso, os séculos XV-XVII, quando a Europa deixou a Idade Média e entrou nos tempos modernos. Tempos de profundas mudanças no modo como o ser humano se entende e como entende Deus e o universo. Dizemos “pintar” e o livro fala de pintura. Mas nesta grande tela que é o livro, além das artes, estão a política, as descobertas marítimas (tanto de Colombo, tão pouco dos portugueses), os humanistas e os reformadores, as guerras religiosas. O subtítulo é “Como os artistas do Renascimento e os clérigos da Reforma criaram o nosso mundo”. Mas estamos perante um quadro com imensas zonas a branco – ou a preto. Falta muita literatura, toda a ciência experimental e toda a música, imprescindíveis para descrever a época. E parece que tudo se passou entre o norte de Itália e o sul de Inglaterra, passando pela Alemanha, França e Países Baixos, mas esquecendo os países escandinavos e principalmente a Península Ibérica. Como é possível ignorar o “Século de Ouro” espanhol?
Porém, alguns dos sete capítulos deste livro valem por livros independentes. Digamos que o capítulo II, “A invenção da Beleza Humana”, poderia ser lido como uma obra autónoma sobre o fim da piedade e artes medievais e as novas correntes artísticas do Renascimento. Em cerca de 50 páginas, temos um estudo magnífico sobre a descoberta do corpo pela arte do Renascimento – e como é admirável seguir a evolução através das três esculturas de David, uma de Donatello, de 1440, outra de Verrocchio, de 1476 e outra, a mais conhecida, de Miguel Ângelo, de 1504 –, acompanhamos o génio de Botticelli nas pinturas “Primavera” (com um vestido onde já contaram flores de mais de 500 espécies diferentes) e “Nascimento de Vénus” (aquela pintura tão maravilhosa que nem reparamos que uma mulher não pode ter um pescoço assim), entre outras, e não podemos ficar indiferentes ao génio absoluto que foi Miguel Ângelo, tanto na escultura (David, Pietá, Moisés) como na pintura (Capela Sistina).
Outros dois capítulos valeriam outro livro. Os capítulos III e IV, tendo como títulos, respetivamente, “Novos pensamentos para novos mundos” e “Reforma”, podem ser lidos autonomamente. Fala-se da Reforma Protestante. E muito dela se vai falar nos próximos tempos. 2017 é ano centenário das Aparições de Fátima e da Revolução Russa, mas é também o ano do quinto centenário da Reforma Protestante (31 de outubro de 1517 é o dia da publicação das 95 teses de Lutero contra as indulgências). A este livro hipotético sobre a Reforma poderíamos acrescentar o capítulo VI, “Cristãos contra Cristãos”, mas estaríamos então a ler sobre os outros reformadores (calvinistas e anglicanos) e sobre a Contra Reforma Católica. Porém, quando Thomas Cahill dedica apenas cinco páginas à Contra Reforma, ficando pelo Concílio de Trento (“1545-1563: Os católicos organizam-se”, páginas 292-296), não podemos dizer que aborde o assunto com seriedade. O autor deixa sumários e ideias gerais que precisavam de ser esclarecidas. Um exemplo: depois do Concílio de Trento, “bispos e teólogos que tinham esperanças de um compromisso foram marginalizados” (p. 294). Quem? Que compromissos? Marginalizados como? Parece-nos, neste assunto da Contra Reforma como numa série de outros (quando fala em meia dúzia de linhas sobre os jesuítas; quando fala de Tomás Moro; quando dá saltos até ao presente para falar da pedofilia…), que Thomas Cahill sofre de um certo preconceito anticatólico. Safa-se, para ele, o Papa João XXIII, que merece umas páginas, a par do teólogo Bonhoeffer (alemão, protestante) e da ativista social Muriel Moore (norte-americana, episcopaliana), num “Poslúdio” completamente despropositado. Felizmente são só sete páginas. Os três cristãos que admira são de facto notáveis, mas não se compreende a inserção destas notas biográficas de pessoas do séc. XX num livro sobre os séculos XV-XVII, mesmo que se pretenda dar uma nota de ecumenismo (os dois protestantes eram simpatizantes da Igreja Católica; e o católico – o Papa – chamava “irmãos” aos protestantes, uma audácia na época).
Por último, a leitura de um livro destes dá-nos o gosto de acompanhar uma cultura enciclopédica. Aprende-se muito. Faz bem à cultura geral. Mas é preciso ter cuidado porque há erros. Detetamos alguns. O poeta Petrarca (o inventor do soneto) não foi “padre católico” (p. 76). Recebeu ordens menores, sim, mas não a ordenação de padre. A Inquisição Espanhola, com certeza temível (mas não menos que muitos outros tribunais da época e muito mais rigorosa nos procedimentos legais, o que representou um avanço para a justiça, como tem demonstrado a historiografia atual), não perseguiu bruxas (p. 57). Aliás, na Península Ibérica, onde a Inquisição esteve ao serviço do Estado (reis), praticamente não houve perseguição às bruxas, ao contrário do que aconteceu no centro e norte da Europa, tanto por parte de católicos como de protestantes. E é pura e simplesmente errado dizer que o reformador Calvino foi “o primeiro passo na longa evolução da doutrina democrática da separação das Igreja e do Estado” (p. 289). Mesmo que não queiramos remeter tal separação Igreja/Estado aos Evangelhos (“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”), temos imensos factos históricos que são passos para a sua concretização. O mais significativo será, talvez, o facto de o Papa ter ficado em Roma quando a capital do Império Romano se transferiu para Constantinopla, no ano 330. A aceitação da separação física (são mais de 2000 km de Roma a Constantinopla) teve por base, sem dúvida, a consciência da separação concetual (teológica, mesmo) dos poderes temporal e espiritual, apesar de todos os retrocessos que se seguiriam.
J.P.F.