Mártires da Caminhada

Direitos Humanos Inicio a escrita desta pequena crónica no dia 24 de Março. Hoje é 5ª Feira Santa, dia em que as solenidades da Semana Grande dos Cristãos adquirem o seu carácter mais solene. Liturgicamente, lembramos a Última Ceia do Senhor, a sua Prisão e o início da Paixão que O vai levar até ao Calvário.

Simultaneamente, no Martirológico Latinoamericano, hoje é lembrada a morte de uma das figuras mais destacadas na luta pela identidade, liberdade e dignidade do povo latinoamericano: Dom Óscar Romero, arcebispo de El Salvador, assassinado no ano de 1980.

“São Romero da América Latina”, como foi “baptizado” pelo povo – pese embora o seu processo de beatificação estar a demorar mais do que outros nas dependências do Vaticano (vá-se lá saber porquê!?) – foi um profeta dos tempos modernos. E, por isso, teve o reconhecimento de Deus, que lhe conferiu o “grau” mais alto a que pode aspirar um cristão: a Graça do Martírio.

Na verdade, para nós europeus, em especial para os portugueses, a realidade do martírio é, no mínimo, algo já distante no tempo e, sobretudo, no espaço. Salvo algumas excepções, ouvimos sempre falar dos mártires como “missionários que antigamente davam a vida na defesa dos valores do Evangelho” ou então “os que ainda hoje morrem em países longínquos por causa da intolerância religiosa”. Alguns poucos, mais ousados, ainda lembram os nossos que, em tempo de ditadura, sucumbiram a perseguições e maus tratos tão somente por defenderem um valor primordial: a Liberdade.

Contudo, aqui, na América Latina, as coisas passam-se de forma diferente. A realidade do martírio não é vista de forma distante. Pelo contrário, ela está presente na caminhada das pessoas que lutam, diariamente, pela justiça e pela paz no Brasil ou em tantos outros países da “Pátria Grande, latinoamerica querida”.

Não tão longe da pequena cida-de nordestina, onde estou em compromisso missionário (o Estado do Pará é vizinho ao do Maranhão), ain-da no mês passado, mais uma voz profética foi silenciada apenas por defender o direito dos camponeses à Terra e o equilíbrio ecológico da Amazónia. A Irmã Dorothy Stang, freira norte-americana naturalizada brasileira, assassinada com seis tiros, às ordens de um obscuro conluio de fazendeiros e madeireiros do norte do Brasil, tornou-se a mais recente mártir da causa da defesa dos excluídos, companheira eterna nesta caminhada rumo à libertação integral dos mais pobres, os preferidos de Cristo.

Segundo a CPT (Comissão Pastoral da Terra), organismo da Igreja Católica que no Brasil trata das questões da Reforma Agrária, só em 2004, 161 lideranças comunitárias e religiosas, defensoras dos direitos humanos, constavam de uma lista de pessoas marcadas para morrer. Só por questões fundiárias, nos últimos quinze anos, no Brasil, já foram assassinadas mais de um milhar de pessoas! Segundo o povo, são os “mártires da terra e santos da caminhada”. Sim, porque o povo, por aqui, acredita que o sangue dos mártires é sinónimo de santificação. E, apesar da ortodoxia de certos sectores da Igreja – que não vêem com bons olhos essas “santificações” populares – ninguém demove o povo pobre de reconhecer naqueles mártires os novos santos!

Talvez não nos seja concedida a Graça de derramarmos o nosso sangue em favor dos irmãos (nem todos, provavelmente, seremos dignos desse Dom Supremo, que é o martírio!); mas é nosso dever, ao menos, “manter viva, actualizada e subversiva a memória dos mártires”. Porque mártir quer dizer “testemunha” e, certamente, não há forma maior de testemunhar o Amor de Deus do que “dar a vida pelos irmãos” (Jo, 15, 13).