O primeiro andar

Deus, quando tirou Abraão da terra de Ur dos Caldeus, na Mesopotâmia, prometeu-lhe uma terra e uma descendência. Abraão seguiu as indicações de Deus e estabeleceu-se numa terra onde a sua descendência prosperou. Mas, com Jacob, a mesma, nos seus doze filhos, teve de ir para o Egito, abandonando a terra da herança, e aí se fixou durante uns quatrocentos anos. Moisés veio para libertar o numeroso povo e levou-os de volta para a terra prometida. Com Josué, a mesma foi dividida em doze tribos ou regiões. Na monarquia, a mesma é dividida em dois reinos, o de Israel, a norte, e o de Judá, a sul. E com as invasões sucessivas de assírios, babilónicos, persas, gregos e romanos… a terra prometida passa de mão em mão….e o povo, animado pelos profetas, anseia pelo Messias, que virá devolver a terra ao Povo, e isso até aos dias de hoje.
Em 1948, os judeus criam o Estado de Israel numa parcela pequena dessa terra… E têm de conviver com palestinianos, numa crise de ocupação de territórios, atentados e levantamento de muros que nunca mais vai ter fim. Israel sonha com a terra conquistada por Moisés… e espera a vinda de Elias para lhes devolver a terra das promessas.
Quando Jesus vem ao mundo, o povo esperava que Ele restituísse essa terra a Israel, mas as suas armas são de paz e o seu exército é celeste e o seu Reino não é deste mundo. É então que, na sua última caminhada para Jerusalém, Jesus Se transfigura no monte Tabor. Mostra a sua divindade, rasgando a figura e mostrando a sua essência divina. A isso chamamos Transfiguração. E isso, porque a figura em breve seria desfigurada no alto da cruz. Como dissera o profeta Isaías, não tinha figura de homem, tão aniquilado se apresentaria.
Para fortificar a fé dos apóstolos, mostra-lhes a fonte da sua Ressurreição prometida ao descer do monte. Moisés e Elias falam com Jesus. O assunto parece ser a sua morte em Jerusalém. Entendemos que o seu sangue ia regar esta terra de herança… Esta figura de terra que os homens teimam em conquistar ainda hoje, em tantas lutas fratricidas de heranças familiares, por exemplo… O seu sangue tem de marcar esta terra, desfigurando-a para poder ser, por sua vez, elevada ou transfigurada.
Moisés conquistara a terra prometida e aí reintroduzira o povo da promessa. Elias era o esperado para anunciar a proximidade do Messias que implantaria uma posse eterna desta terra e do mundo inteiro. No fundo, o assunto era a Terra Prometida. E isto passava-se como num “primeiro andar” de uma peça de teatro. No chamado rés-do-chão, de pés na terra das promessas humanas, estão aqueles que são Paulo chama de Colunas deste edifício que é o novo povo de Israel. Pedro. Tiago e João. Estão entretidos com o espetáculo a que assistem, sem nada entender. Mas uma sombra os envolve, como a Maria, no dia da Anunciação, e a Palavra se pronuncia tal como encarnou, vinda do Pai… E nesta sombra eles descobrem um novo lugar, um aqui, onde é bom estar. Não se trata desta terra geográfica, nem da Jerusalém para onde se dirigiam, nem aquele monte no meio do Armagedão. Trata-se de uma terra sem limites, que os fará abandonar sua terra e fazer do mundo a sua pátria e da Palavra encarnada a única linguagem que a todos une pelo Amor. Eles entendem que, sem sair deste rés-do-chão que pisam, a antiga Canaã, terão de ir à descoberta de outros horizontes e têm de subir para aquele “primeiro andar”, onde Jesus brilha com a luz do Deus que é e implantar esta terra nova no coração de todos os homens.
Chamar-se-á Reino de Deus, Nova Jerusalém descida do Céu, Paraíso devolvido ou reencontrado, visão de Deus sem confusões de leitura, simplesmente aquele lugar onde é bom estar… e ser… e viver…e possuir eternamente: “Felizes os pobres porque terão a terra por herança”.
E vamos aprendendo, na caminhada da vida e da Quaresma, que estar na terra sem subir ao “primeiro andar” e aprender a viver do Céu e para o Céu é já perder a terra das promessas, como o Israel de hoje, que teima em querer a terra que cerca com muros, alheio à realidade de que na nova terra todos tem lugar, pois ali não há raças, nem tribos, mas só filhos, que são herdeiros e que, pelo Batismo, já possuem a Terra Prometida.
Vitor Espadilha