Pensar a vida, um dever

WALTER OSSWALD Médico.  Prémio “Árvore da Vida 2016”

WALTER OSSWALD
Médico.
Prémio “Árvore da Vida 2016”

Aprendemos na escola que o ser humano tem natureza racional, isto é, que dispõe de razão e que esta gere a sua vida, escolhendo valores, cultivando virtudes, ponderando opções, ditando procedimentos e optando por intervenções. Ficamos mais tarde a saber que as coisas são talvez mais complexas, que a razão não tem a pureza kantiana que a filosofia deontológica propôs, mas antes que as emoções têm um importante papel nos nossos comportamentos, atitudes e opções. Veio ainda, nos nossos dias, todo um enorme caudal de informação, optimisticamente apelidada de objectiva, oriundo da neurobiologia, sobre o funcionamento do cérebro. Este aumento do conhecimento, mais descritivo do que explicativo, tem sido interpretado de muito variada forma por correntes do pensamento: desde as neo-materialistas, que entendem que as decisões e as atitudes de juízo moral são consequência directa da actividade de determinados grupos neuroniais (no que se poderia apelidar de regresso à teoria oitocentista de Molechotte, segundo a qual o cérebro segrega o pensamento como o fígado segrega a bile) até às que apontam para a impossibilidade de o cérebro se investigar a si mesmo, sujeito e objecto de estudo, afirmando que os circuitos neuroniais apenas são executores de ordens emanadas de uma entidade não material e que escapa à análise científica.
Seja como for, parece-me bem mais de acordo com o que conhecemos das atitudes e comportamento a visão da intangibilidade das decisões e de uma interpretação que não exclui o factor espiritual, para além de uma redutora posição de causalidade. Está de acordo com esta escolha o facto de a mente humana, desde o raiar da filosofia, se ocupar com a questão essencial: pensar a própria vida.
Pensar a própria vida inclui o escrutínio da razão do viver, do seu sentido e finalidade, como os filósofos de todos os tempos racionalmente intuíram (a expressão friza o facto de intuição e razão não serem conceptualmente antagónicas ou excludentes). E também o dever de discernir como viver bem esta vida que nos é dada, a cada um de nós, sem intervenção da nossa vontade – não está nas nossas capacidades a decisão de sermos gerados e, em consequência geralmente observada, nascidos.
Neste contexto surge a questão, tão antiga e de quando em vez, como no presente, renovada: se não podemos dispor do nosso nascimento, não será lícito dispor da vida e escolher o momento da nossa morte? Esta foi sempre a questão fulcral do suicídio e, por arrasto, da eutanásia. A tese de que há um direito a dispor da própria vida parte de um pressuposto errado, a saber, o de que o indivíduo possui uma vida, quando na realidade esta não é um bem, adquirido ou concedido ao indivíduo, antes uma condição básica e fundamental para a identidade da pessoa humana. Tinha razão Tomás de Aquino ao afirmar que a vida não é um valor, antes o pressuposto, a plataforma necessária e suficiente para a existência de valores. Por isso a Constituição da República Portuguesa, no seu Artigo 24, n.º 2, afirma, lapidarmente, que a vida humana é inviolável. Por isso o Código Penal inclui articulado que comina pesadas penas de prisão para o médico que mate alguém a seu pedido (eutanásia) ou preste ajuda a quem se queira suicidar, fornecendo-lhe meios de realizar o seu intento.
Se o argumento dos defensores da eutanásia, o da autonomia individual, fosse válido, teríamos de legalizar toda e qualquer decisão de pôr termo à vida, mesmo a de adolescentes perturbados ou de anciãos desiludidos. Seria imoral tentar salvar pessoas que tentam o suicídio, como acontece diariamente nos nossos serviços de urgência; teria de ser anulada a campanha em curso, no âmbito da Direcção Geral de Saúde, sob a designação de Plano Nacional de Prevenção do Suicídio. Mais ainda: se se tratasse de um direito das pessoas, haveria não apenas a obrigação de garantir o respectivo acesso como também o de difundir, junto da população, a existência desse direito, certamente ignorado pela maioria da população; ou seja o Estado teria o dever de promover o respectivo conhecimento, com o consequente incremento das mortes por eutanásia.
Não, não há um direito à morte a pedido. Há, sim, um direito a viver, da melhor forma possível, a vida que nos foi oferecida.

 

Espaço em parceria com a ADAV Aveiro – Associação de Defesa e Apoio da Vida. Uma vez por mês, personalidades convidadas pela ADAV expõem as suas razões contra a eutanásia.