Qualificar o trabalho ou escolarizar os trabalhadores

Questões Sociais 1. Diga-se, desde já, que é incorrecta a dicotomia entre a qualificação do trabalho e a escolarização do trabalhador. Na verdade, uma e outra deveriam acontecer no dia-a-dia e nos programas dos trabalhadores, dos empresários, das empresas (e outras organizações) e das entidades que se lhes dedicam (sejam elas públicas ou privadas e de natureza associativa ou outra).

Por qualificação do trabalho entende-se aqui o processo permanente através do qual o trabalhador, o empresário e a própria empresa (ou outra organização) aumentam e melhoram os seus saberes e competências, de modo a tornarem-se mais eficientes e eficazes, melhorando em simultâneo a realização e satisfação pessoais. A este propósito, já se fala, há alguns anos, de “organizações qualificantes”, com base indispensável do desenvolvimento futuro.

Por escolarização dos trabalhadores entende-se a elevação dos níveis de escolaridade dos trabalhadores e empresários e, independentemente disso, a aquisição de saberes próprios do sistema escolar. Naturalmente, a escolarização do trabalhador pode contribuir para a qualificação do trabalho. Porém — e embora seja desejável que coexistam uma e outra — pode haver qualificação do trabalho sem escolarização do trabalhador, e vice-versa.

2. Na nossa cultura, bem como no sistema escolar, aconteceu, há muito, uma grave cisão entre o trabalho e a qualificação: abandonou-se o trabalho como potencialidade qualificante, e passou a defender-se a formação profissional como realidade separada do trabalho, traduzida em cursos, em acções ou outros tempos específicos de formação realizada sobretudo em sala, em centros próprios e em escolas. Transmite-se, como óbvias, as seguintes meias verdades:

— há que dedicar mais tempo à formação dos trabalhadores, reduzindo o tempo de trabalho;

— e há que aumentar a escolaridade dos trabalhadores.

O lado verdadeiro destas afirmações é óbvio, embora levante problemas de difícil solução a muitas empresas e ao Estado (sobretudo enquanto garante e financiador decisivo da formação). O lado não verdadeiro consiste no não reconhecimento do trabalho como realidade e potencialidade formativa.

Em termos práticos e políticos, resultaram daqui três consequências desastrosas que marcaram gravemente as últimas décadas de formação: a imensa maioria dos trabalhadores e das empresas não beneficiou da “formação” institucional (separada do trabalho e financiada pelo Estado); o trabalho é reduzido a actividade operacional e a objecto de mera gestão; e a “formação” torna-se actividade convencional, mais voltada para a melhoria de Portugal na classificação internacional do que para a efectiva qualificação do trabalho.

3. Curiosamente (e como era de prever), a discussão em torno da “lei da formação profissional” parece confirmar estas linhas de tendência. Na altura em que escrevo a presente nota (final de Julho), o projecto de diploma ainda não se encontra muito difundido, e não se iniciou o respectivo processo de concertação (entre as Centrais Sindicais, as Confederações Patronais e o Governo). Contudo, já surgiram alguns indícios de posições destas entidades. A julgar por eles, existe uma alta probabilidade de a futura “lei” se vir a saldar pelo aumento das responsabilidades e financiamento do Estado. Neste ponto, aliás, não é difícil obter a concordância sindical e patronal.

A ser assim o Estado vai, uma vez mais, assumir compromissos superiores às suas possibilidades. No futuro — como no presente — ficará sempre numa posição de devedor, com base no facto de não honrar os seus compromissos. E os grandes prejudicados serão, também, como hoje, a maioria dos trabalhadores, dos empresários e das empresas.