Quanto vale uma vida humana?

FLAUSINO SILVA
Empresário

Faz um mês, neste início de semana, que se deu a catástrofe nacional, porque o foi, que vitimou mais de seis dezenas de pessoas, fazendo muitos outros feridos, alguns com muita gravidade e deixando um rasto de destruição material e humana a trás de si.
Foi desolador o panorama que televisões, rádios nacionais e outros meios de comunicação social presentes no coração das zonas incendiadas relataram então e reavivaram hoje.
Os dramas humanos ultrapassam de longe o aspeto tenebroso da terra, das casas, das fábricas destruídas, com todo o seu equipamento e das árvores carbonizados, mais parecendo que se conjugaram para nos transmitirem uma visão infernal e irreversível da calamidade.
Pessoas espavoridas, que andam de um lado para o outro à procura não se sabe do quê, autoridades que circulam e prometem ressarcir as vítimas, num quadro futuro que não inspira a confiança necessária, enfim, um sem número de instituições que angariou fundos e dádivas e primou pela celeridade na sua recolha, que aguardam o destino da finalidade que as motivou – mitigar as necessidades e carências imediatas.
De tudo quanto se torna visível aos nossos olhos acentua-se fundamentalmente o vazio espiritual, provocado pelo que existia e desapareceu, pelo que se tocava e já não tem vida, pelo que laborava e foi irremediavelmente interrompido, porque tudo foi cortado, decepado, separado, arrancado, reduzido a cinzas e a escombros, que os olhos já não contemplam porque desapareceram.
Este vazio é explosivo, destrutivo, corrosivo, aniquilando à nascença qualquer esforço de reação, de recuperação e de regresso ao passado e à normalidade.
Enquanto as casas não estiverem recuperadas, as terras com sementeiras verdejantes, os quintais com novas árvores de fruto a crescerem, plantas e arbustos a abrolharem e os pinhais das proximidades dos lugares habitados, não forem limpos do negro dos resíduos, para dar origem a nova vida que virá, sim que virá, sem dúvida e com redobrada força pela energia que os incêndios geram na terra queimada, enquanto tudo isto não começar à acontecer, as pessoas sobrevivas continuarão presas à catástrofe, com as fichas vitais ligadas à corrente da destruição.
Antídoto fundamental para ultrapassar o sofrimento humano, intenso e profundo, são os sinais de nova vida, de novas casas, de novos equipamentos, de novas árvores, que mudem o sentido da calamidade e o invertam empurrando para um futuro com esperança.
Por isso, todas as iniciativas imediatas que visem pôr em andamento o processo de revitalização, mesmo que apenas inicial e parcial, mas com determinação, são de extrema importância.
O que nos mostraram as reportagens deste primeiro mês foi um certo imobilismo individual e coletivo, pessoal, autárquico e, sobretudo, governativo, adensando a já de si nuvem negra de incertezas que as pessoas guardam bem vivas na sua retina.
Mesmo as entidades não autárquicas e governamentais – Cáritas, Misericórdias – não deram esse passo vital de pôr obras em marcha, de arrancar no terreno com as obras essenciais.
Um simples processo de colocação, no terreno, de máquinas de movimentação de terras, retirando os resíduos e escombros para lugar apropriado, criaria uma dinâmica nova, necessária às populações para acreditarem e reagirem.
Mas não, parece que tudo tem de ser traçado a régua e esquadro, tudo milimetricamente planeado e programado, regulamentado, porque estão em causa, dizem, dinheiros públicos e dos doadores.
Por isso mesmo, se são dinheiros públicos e dos doadores devem ser postos de imediato ao serviços das pessoas e das causas urgentes, já mais do que identificadas, como a que foi levada ao Senhor Presidente da República – o pagamento do funeral de uma pessoa, que deixou uma criança órfã.
Algum cidadão teria a ousadia de contestar a decisão, se tivesse sido tomada, de afetar uma parte das dádivas ao pagamento de todos os funerais das vítimas da catástrofe?
Este gesto simples, teria, só por si, sido uma importante força encorajadora de todos quantos, além dos seus prejuízos pessoais e familiares, tiveram de arrostar com o sofrimento de dar sepultura condigna aos seus mortos e fazer o necessário luto, no luto de tudo o que lhes aconteceu.
O excesso de minudências, de regulamentos para disciplinar a atribuição de subsídios, em detrimento da atribuição imediata de meios financeiros, por exemplo para o arranque das recuperações das fábricas destruídas, com centenas de desempregados afetados, face à necessidade premente de repor em marcha a economia, justifica claramente a decisão imediata de colocar dinheiro nessas empresas, obviamente proporcionado e controlado, fixando regras de devolução a longo prazo e salvo boa fortuna.
Porquê este imobilismo oficial, institucional, cooperativo, assistencial, que aprofundou o sofrimento e a crise? Parece que foram todos tocados pelo mesmo estado petrificante provocado pelo cataclismo, ou o que parece mais plausível, foram todos tomados pela dimensão astronômica dos números, dos montantes necessários à reconstrução, e recolheram-se a fazer contas e a escrever regulamentos, enquanto se espera por uma decisão da união europeia (UE) – tardissimamente solicitada, para acrescentar mais euros aos já reunidos pelo Governo, pela Cáritas, pelas Misericórdias, pelo povo anónimo, pelos óbolos de empresas e fundações.
A gestão e o controle não são inimigos da celeridade. É preciso arrancar com o processo de revitalização já, para dinamizar, encorajar, pôr em andamento e todos seguirão!
Mas há ainda uma ausência crucial – a da Igreja, da comunidade eclesial, no terreno, com a sua ação, não apenas sócio-caritativa, mas sobretudo humana, pessoal, militante, a colocar Deus no centro da catástrofe, sem medo, recuperando a esperança que dele vem.
Permitam-me recuperar um excerto do texto da Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Christifidelis Laici”, de Sua Santidade o Papa João Paulo II, sobre a Vocação e Missão dos Leigos Na Igreja e No Mundo – mais concretamente uma parte do número 3 da Introdução do documento dirigido aos Bispos, Sacerdotes, Diáconos, Religiosos, Religiosas e Todos os Fieis Leigos:
“3. O significado fundamental deste Sínodo e, consequentemente, o seu fruto mais precioso, é que os fiéis leigos escutem o chamamento de Cristo para trabalharem na Sua vinha, para tomar parte viva, consciente e responsável na missão da Igreja, nesta hora magnífica e dramática da história, no limiar do terceiro milénio. Novas situações, tanto eclesiais como sociais, económicas, políticas e culturais, reclamam hoje, com uma força toda particular, a ação dos fiéis leigos. Se o desinteresse foi sempre inaceitável, o tempo presente torna-o ainda mais culpável. Não é lícito a ninguém ficar inativo. (“As urgências atuais do mundo: porque estais aqui o dia inteiro inativos?”)”.
Se este texto não nos interpela, se os constantes apelos do Papa Francisco não nos impelem, então quem somos e o que é que fez em nós o Batismo e o sermos enxertados em Cristo?
As pessoas afetadas pelos incêndios e todos os seus consequentes efeitos destrutivos precisam de reencontrar Deus, a verdadeira esperança, senão a única, já que a que repousa nos homens pode fraquejar, como está a acontecer.
E é à Comunidade Eclesial que compete levar Deus a estas pessoas afetadas, sofredoras, repor Deus no seu meio. Esta ação evangélica, apostólica, não se consegue apenas com celebrações de sufrágio – importantes para a serenidade espiritual de cada um e das comunidades locais, mas sobretudo com a presença dos leigos, padres, religiosos, diáconos e bispos, no dia a dia das pessoas, a ajudá-las sobretudo a encontrarem novos motivos de esperança, a refazer as suas rotinas anteriores, a superar os medos e os pavores, a reorganizar a sua vida económica e financeira, a semear, plantar e recriar.
Para nos levar até este trabalho, recordemos, se necessário, como procediam as primeiras comunidades cristãs. Nós acreditamos que é possível recriar a ESPERANÇA!