Testamento: Não tenho essa liberdade

Consigo, apenas, respirar no meio de muitas confissões. Rezo na memória o verso do hino de vésperas: “para gozar os dons pascais”. Amada Páscoa, passagem, sobre o abismo da injustiça dos homens. Acredito cada vez mais na confissão sacramental, não na canónica, mas na existencial. Olho as crianças a jogar bola, na chuva torrencial e húmida, sempre o ar abafado. Chega-se uma adolescente, corpo precoce todo de mulher feita, e junta-se ao grupo, não para jogar a bola, mas para, no recinto da escola, no sentido oposto ao da capela, permanecer na beirada do telhado; colocar-se bem debaixo, recebendo a água do céu, como bênção. Vários minutos assim e segue caminho. Eu mesmo dou penitências, que são minhas e também as faço pela Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo dos últimos tempos. Penitências ou liberdades. Liberdades penitenciais ou penitências libertadoras, numa vida que já é sempre penitência. Reclamo se alguns não precisavam mais dessa Liberdade; de se colocarem sem falsas metáforas debaixo dessa chuva nas beiradas dos telhados, re-cebendo a bênção da água. Água da chuva, água baptismal, que purifica o pecado original, resgatando-nos numa Segunda Inocência.

Outras liberdades me perseguem. O cristianismo é um jogo de liberdades. Essa é a experiência originária da Oração. Presentemente, com a interioridade de publicano, saboreio o espírito da oração de Thomas Merton. “Senhor, meu Deus, não sei, para onde vou. Não vejo o caminho diante de mim. Não posso saber com certeza onde terminará. Nem sequer, em realidade, me conheço, e o facto de pensar que estou seguindo a tua vontade não significa que, em verdade, o esteja fazendo. Mas creio que o desejo de te agradar te agrada realmente. E espero ter esse desejo em tudo o que faço. Espero que jamais farei algo de contrário a esse desejo. E sei que, se assim fizer, tu me hás de conduzir pelo caminho certo, embora eu nada saiba a esse respeito. Portanto, sempre hei-de confiar em ti, ainda que me pareça estar perdido e nas sombras da morte. Não hei-de temer, pois estás sempre comigo e nunca me abandonarás, para que eu enfrente sozinho os perigos que me cercam” (“Na liberdade da solidão”).

– Quem faz a festa padre? Os que promovem a festa, ou os que vão à festa? Penso: que raio, a Vida Eterna é um Eterno Banquete, uma Eterna Festa! Pergunta-me à queima roupa, a mulher com rugas eternas, também ela uma verdadeira Maria li-bertadora… Engasguei-me e teoricamente respondi o “normal”, isto é, uma fuga em frente no meu refinado cepticismo. Mas agora, noite dentro, já sei qual é a verdadeira resposta. Sinto e sei-o, não tenho essa Liberdade. A Liberdade começa quando termina o Medo. Só a Verdade nos libertará. Sei e acredito: hoje, ainda não tenho essa Liberdade. Mas estou uns milímetros mais perto, sou mais feliz por que não me afasto. Há uma pequena multidão, entre os mais pobres, mais humildes e perdidos, como eu e tu, que também sabe e acredita.

Chapadinha (Brasil), 07-03-2005