Três etapas

Quando celebrámos o Pentecostes, as leituras da liturgia sugeriram-nos muitas reflexões. Uma delas partilho: Poder-se-ia dizer que a Bíblia tem três etapas, a saber, o Antigo, o Novo Testamento e o tempo do Espírito Santo ou da Igreja, inaugurado no Pentecostes, e cujos inícios nos contam o livro dos Atos dos Apóstolos.
O tempo do Antigo Testamento poderia simbolicamente ser atribuído ao Pai, como primeira Pessoa da Santíssima Trindade. Mas um era Deus cuja compreensão estava muito limitada pelos condicionamentos culturais e antropomórficos da sua época. Um Deus cheio de variação de humores, que faz Aliança com o Seu Povo, mas convivem o amor com as matanças, a história com o extraordinário e o mito. Um Deus que se irrita e desiste do castigo, que se alegra e se entristece. Um Deus cuja presença é vista quando o homem bíblico tem saúde, vida longa, filhos, bens, tudo quanto pede para a sua vida na terra, pois a vida do além é vida do esquecimento onde não se pode louvar a Deus. Um Deus que guia o Seu Povo, mas castiga o pecado dos pais nos filhos por muitas gerações, justificando na prática humana a chamada lei do talião, “olho por olho e dente por dente”, que permitiu o sacrifício de um número incontável de seres humanos até aos dias de hoje. Esse conceito veterotestamentário de Deus ainda existe na vida dos homens e das comunidades, em estado iniciático, pouco acostumados com a vida do Espírito Santo. Traduz-se, na prática, em considerar Deus amigo quando tudo corre bem na nossa vida, e em negociar com Ele o meu bem-estar à custa de promessas em que tento convencê-lo a atender-me em troca de algo que lhe dou e de que Ele nem precisa. É a fase válida mas espiritualmente imperfeita das promessas. Quem vive de promessas não se conforma com os reveses da vida e só os aceita por ser obrigado, quando não há outro remédio, mas muitas vezes com revolta. Consideram que Deus ora está triste, ora alegre, ora agradado, ora desagradado, o que é impossível em Deus por ser Ele, como aprendemos na filosofia, um ato puro, sem possibilidade essencial de passar de um estado de potência para um de ato e assim sucessivamente. Por isso se diz que Deus não tem princípio, nem fim, nem sucessão.
Este é o estado onde muitos se encontram na Igreja. Alimentam a devoção popular e, por falta de informação e formação, alimentam a superstição e toda a forma de crendice. Tem o seu valor no estado de cada pessoa, mas tem de ser substituído pela fase seguinte, a do Novo Testamento, no qual a humanidade de Jesus é nosso modelo e guia e que nos conduz ao Pai, não como quem teme ou espera receber algo em troca, mas como quem se abandona e só espera ser “Fiat” (“faça-se”) como Jesus e Maria. É a fase do despontar do amor que nos envolve, dando-nos asas para voar no Amor que é Deus e envolver nele a família e a comunidade humana. A fase da caridade à luz de Cristo em que o homem é alimentado pelo próprio Deus para poder servir. A fase em que se pede, mas mais se louva. Tudo se espera, mas sem paixão. A fase em que a alegria e a dor são participadas por cada homem como membros do mesmo Cristo e do Seu Povo e Corpo, que é a Igreja. É a fase em que, como Maria de Betânia, se contempla o mistério, e, como Marta, se vive do mistério digerido ao serviço do bem maior e do bem comum. E em que o simples olhar para a cruz e para o túmulo vazio, nos faz ter a certeza de que não estamos sós, nem entregues aos caprichos de um deus que não sabe o que fazer connosco.
No fim, os adiantados no chamado “caminho da perfeição” vivem a terceira fase, que é a do Pentecostes, a do Espírito Santo. Nessa fase tanto nos faz ter tudo como não ter nada. Viver ou morrer. Saúde ou doença. Juventude ou velhice. Simplesmente, voamos em asas de águia e deixamos Deus acontecer em nós. A fase que nos funde com o Amor entre o Pai e o Filho, que se chama Espírito Santo, em que do mundo e dos homens só nos interessa a salvação dos mesmos, mas sem preconceitos culturais e reservas fundamentalistas, sem apego à matéria e aos desejos que fazem sofrer, sem nos importarmos com o passado, que já lá vai, e com o futuro, que a Deus pertence. Vivemos somente do dia a dia, na certeza de que a única diferença entre esta vida e a do Além é a condição de um corpo ainda não glorificado pela Ressurreição de entre os mortos. Fase em que Deus é presença contínua, e o Céu já é realidade no nosso coração e pensamento, de modo que as nossas reações espontâneas sejam comandadas pelo Deus que nos invade. Para chegar lá: Oração intensa. Caridade sem aceção de pessoas. Dever cumprido, abandono e confiança. Amor, Amor e muito Amor.
Vitor Espadilha