A Constituição da República afirma: “O Estado é laico”?

LUÍS PEREIRA DA SILVA
Presidente da Comissão Diocesana da Cultura

A afirmação é dita e repetida até à saciedade, mas importa ser muito claro. A resposta à pergunta é, apenas, uma: não! De facto, em nenhum momento a Constituição da República Portuguesa, aprovada em 2 de abril de 1976, afirma «o Estado é laico» ou «a República Portuguesa é laica». Hoje, com os meios tecnológicos de que dispomos, não precisamos de mais de dois minutos para o confirmar. Qualquer busca, no documento fundamental da III República, permitirá verificar que as palavras «laico», «laica» ou «laicidade» estão ausentes deste diploma estruturante.
A repetição da frase gerou, porém, a convicção de que esta ali se encontrasse. Tal afirmação, porém, terá de se procurar em outros documentos que não do quadro jurídico português. É o caso da Constituição da República Francesa que, logo no seu artigo 1.º afirma que «A França é uma República indivisível, laica, democrática e social.». Contudo, a história da França não é a história portuguesa e vice-versa. Portugal viveu, com efeito, revoluções que tiveram tiques laicistas como aquele que tomou o espírito dos constituintes franceses. Assim aconteceu, concretamente, no contexto da nossa I República. Contudo, a história veio a mostrar que essa vertigem laicista desrespeitava a sensibilidade do povo, tendo-se conseguido, após uma experiência também ela pouco positiva da segunda república, uma posição de equilíbrio que se configurou na Constituição da III República Portuguesa.
Desde há muito que venho afirmando que houve a sabedoria, por parte dos constituintes de 1976, de ler o que a história recente demonstrava. Havia que respeitar, por um lado, a liberdade religiosa (como muito bem o faz o artigo 41.º da Constituição), mas sem entrar numa vertigem persecutória à maneira do que ocorrera na revolução francesa, que deixou marcas profundas na sociedade gaulesa. Ainda hoje, a relação do Estado com as religiões é, em França, de enorme dificuldade e pode ser considerada como um dos fatores que mais tem contribuído para a dificuldade de permitir o enraizamento dos que, por marcada cultura religiosa, se sentem segregados por um Estado que faz de conta que não sabe das suas origens e matrizes culturais e religiosas.
Portugal não tem, hoje, uma questão religiosa. Muitos, porém, insistem em criar um fantasma onde ele não existe. Esse fantasma é, muitas vezes, suscitado no âmbito da educação, alegando-se que a presença de uma disciplina de Educação Moral e Religiosa atentasse contra a laicidade do Estado.
Esclarecido que o Estado teve o cuidado de não se descrever como laico, importa analisar os artigos da constituição que interessam a este assunto.
Teremos de o procurar nos artigos 41.º e 43.º da Constituição. Não os analisaremos com detenção, mas importa reter duas constatações resultantes dessa procura.
Em primeiro lugar que, segundo o artigo 41.º, fica claro que o objetivo dos constituintes de 1976 foi salvaguardar a liberdade religiosa e não impedi-la. De algum modo, podemos, em síntese, afirmar que o Estado se autolimitou, impondo a si mesmo que não se reconheceria o direito de impor a alguém uma determinada opção religiosa. Isso, no que respeita à legislação sobre educação, está acautelado pelo princípio de que a matrícula na disciplina de Educação Moral e Religiosa não é suposta, mas, sim, deve ser explícita por quem a deseja. A ninguém ela é imposta.
Em segundo lugar, a liberdade que o Estado reconhece não se confina ao âmbito religioso. De facto, quem ler o artigo 43.º não poderá deixar de se surpreender ao ver que o Estado se autolimita outros âmbitos, ao afirmar que «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.»
Se o espírito laicista com que alguns abordam a questão religiosa fosse aplicada a outros âmbitos, seria curioso constatar como o Estado (na perspetiva desses…) não poderia senão processar quem, ao lecionar economia em escolas ou universidades públicas, revelasse alguma predileção por um determinado modelo económico, ou quem, ao lecionar educação visual ou outra disciplina de artes, preconizasse um maior interesse por determinada corrente estética, ou, ainda, quem, no âmbito da disciplina de história, revelasse predileção, por exemplo, pelos portugueses em detrimento dos ‘inimigos’ (os castelhanos, por exemplo), etc… E, noutros âmbitos, poderia sempre perguntar-se se estaria um governo legitimado para comprar a coleção de arte de um só autor ou se seria obrigatório comprar sempre obras de todas as correntes, ou, então, se poderia apoiar um determinado autor literário e não, obrigatoriamente, todos ao mesmo tempo para evitar ‘discriminações’; ou, enfim, se seria legítimo assegurar, nas escolas, refeições vegetarianas, em nome do respeito pela conceção filosófica correspondente, ou…, ou… É fácil concluir que esta leitura peca por literalismo e por não compreender o espírito da Constituição que visa integrar e não segregar ou rejeitar. Podemos considerar que estamos perante um diploma que percebeu que, no que se refere ao âmbito religioso, a relação entre o Estado e as religiões já não pode ser de indiferença ou, mesmo, perseguição, mas de diferença respeitosa, de respeito cooperante em prol do bem da sociedade e dos cidadãos. E esse é o registo em que se situa a disciplina de Educação Moral e Religiosa, contra a qual tantas vezes se insurgem os fundamentalistas do laicismo. Sim, porque, como outros fundamentalismos, também este tem os seus agentes. E quanto sangue corre das suas mãos! Que o digam os mais de 110 mil mortos às mãos dos laicistas, por ocasião do rescaldo da revolução francesa, em pleno período do terror, em 1793 (veja-se a descrição exaustiva deste período que é apresentada em «o livro negro da revolução francesa», editado pela Alêtheia, em 2010).
A hora é, em Portugal, de partilha e de encontro e não de conflitualidade desnecessária, estéril e falsa. Vale a pena recuperar as oportunas palavras do saudoso ex-presidente da República, Dr. Mário Soares, reconhecidamente descrente, para quem «A I República, em parte caiu, pelo conflito entre a República e a Igreja Católica. Depois do 25 de Abril quando regressei do meu exílio em França, trazia uma ideia na cabeça: não repetir a luta entre o Estado Laico e a Igreja Católica. E assim actuei sempre como a Igreja Católica sabe bem – e o Vaticano – desde que tive responsabilidades no Portugal de Abril, apesar de não ser religioso, como se sabe» (Amadeu Gomes de Araújo, Um erro de Afonso Costa: As Missões Laicas Republicanas (1913-1926), editado pela Alêtheia Editores, em 2015.)
A razão para não retomar esse conflito não deverá ser, apenas, nem fundamentalmente, de ordem estratégica (porque dará mau resultado!), mas genuína: os mais sensatos de entre os pensadores atuais (recordemos Peter Berger, Alain de Botton, etc.), mesmo descrentes, reconhecem o caráter insubstituível da religião. Impedi-la de estar presente, no espaço público, é romper a ligação da árvore à raiz. Não poderá, seguramente, dar bons frutos uma tal decisão.