A estratégia da desconstrução geral

LUÍS PEREIRA DA SILVA Professor. Comissão Diocesana da Cultura

Construir é sempre uma tarefa lenta, morosa, paciente. Contrasta com a facilidade com que se pode destruir. É, aliás, para alguns, este um dos grandes argumentos de que o mundo tem de supor a existência de Deus, pois só uma vontade férrea, capaz de conferir dinamismo de autossuperação da destruição, é que poderia garantir o sucesso da vida diante da violência da morte e do inesperado da destruição.
Mas regressemos ao ponto de partida.
Sabemos quão difícil é construir os liames com que se une uma sociedade. E sabemos, também, como tão facilmente é possível gerar ondas de destruição que degradam o ‘cimento’ que gerava a força que unia.
Assiste-se a um poderoso movimento de desconstrução intencional dos liames que cimentam os laços que nos ligam, enquanto seres sociais.
Não se pense que este processo é ingénuo, gratuito e sem intenção. Ele corresponde a um desiderato bem definido. Basta que se leiam com atenção livros como «O livro negro da Revolução francesa» ou «dez livros que estragaram o mundo e mais cinco que também não ajudaram nada» ou, mais recentemente, «contributos para história do feminismo», todos editados pela Alêtheia, uma editora que vai arriscando trazer à mão dos leitores preciosidades que fazem repensar o modo como se vai fazendo a política, no ocidente.
Une todos estes livros o reconhecimento de que se está a assistir, de há dois séculos e meio para cá, a um processo de desconstrução intencional.
Como já descrevíamos, em artigo anterior, a intenção é deixar o indivíduo sozinho perante o Estado. Isso mesmo sustentava Robespierre, um dos arautos da revolução francesa, que acabou vítima da vertigem homicida que ele próprio protagonizou. Na sua perspetiva – defendida por muitos, hoje, com outras justificações -, «a pátria tem o direito de educar os seus filhos; ela não pode confiar este depósito ao orgulho das famílias, nem aos preconceitos dos particulares, alimentos permanentes da aristocracia e de um federalismo doméstico que retrai as almas ao isolá-las.» (Escande, O livro negro da revolução francesa, p.724). Este é horizonte que legitima que tudo se faça para relativizar o papel da família, dos laços familiares e que se organize a ‘sociedade’ como mera soma de indivíduos ou, como diz, acertadamente, Braga da Cruz, reduzir a sociedade a «uma população sobre um território». Repare-se como é fácil desconstruir e gerar a dúvida que origina o caos. Imagine-se que o código da estrada, temporariamente, invertia o significado dos sinais. Aplique-se, por exemplo, à cor dos semáforos. Imagine que o verde passava a significar que se tinha de parar e que o vermelho era para avançar.
Quando alguém tentasse repor a verdade, a confusão já estava gerada, de modo que só após muito caos e destruição e, eventualmente, após decisão autoritária é que se conseguiria repor os índices de confiança na sinalética que existia, antes deste processo de desconstrução.
Algo semelhante parece pretender-se para a sociedade: desconstruir para que mais facilmente se assegure lugar para os que pretendem o poder.
Aliás, há algo de preocupante no modo como se legisla, de há algumas décadas para cá. Não se legisla com a preocupação de subordinar a lei a valores comuns, marca do ‘cimento’ de que acima falávamos, mas legisla-se porque se tem poder. Pode configurar-se tal como uma nova ditadura, já não de um só titular, mas de um Parlamento que se sente sempre legitimado para decidir, desde que corresponda à sua ideologia.
Quem legitimou, por exemplo, este parlamento para discutir e, eventualmente, aprovar legislação sobre a eutanásia? Ou teremos de concluir que o Parlamento, porque pode, está legitimado para legislar. Pode, de facto, tem poder, mas está legitimado?
Gustavo Zagrebeslky, que foi presidente do Tribunal Constitucional de Itália, alerta para os perigos das democracias que se consideram legitimadas para legislar sobre tudo, até sobre os valores que estruturam a sociedade que deviam servir. Chama a estas ‘democracias céticas’, para quem o que interessa é conservar o poder, bastando-se com os indicadores das sondagens, ou ‘democracias dogmáticas’, possuidoras da verdade absoluta, sentindo-se, por isso, autorizadas a mandar na própria vida e morte dos cidadãos. Por oposição a estes dois modelos de democracia, Zagrebelsky propõe o que chama «democracias críticas», que poderíamos designar como ‘autocríticas’ que se sabem frágeis e suscetíveis de manipulação, pelo que não legislam de modo a pôr em causa o que une os cidadãos. Não legislam sobre a vida e a morte, mas acolhem os limites próprios decorrentes da natureza humana.
E este é o problema de uma certa visão da política e da democracia: aquela que entende que tudo é cultural, é feito pela vontade humana, sem dever de respeitar algo que lhe seja anterior, a própria natureza humana.
Veja-se como esta síntese nos ajuda a perceber quão pantanosas e desconstrucionistas (criamos o neologismo porque nos referimos a um processo de desconstrução programada…) são as medidas que vão sendo adotadas: aborto (e a legitimação da violência da mãe sobre o filho), barrigas de aluguer (e o afastamento entre a geração e o afeto), mudança de sexo aos 16 anos (e a dissociação entre a natureza e a identidade, com a implicação acrescida de dissociar o indivíduo dos seus laços familiares, na medida em que se preconiza que os pais nada tenham a ver com esta decisão), a eutanásia (e a quebra da solidariedade na morte, que se reduz a uma mera experiência solitária)…
Quem pode, só porque pode, está legitimado para legislar? Assim o entenderam todos os ditadores, ao longo dos tempos! E sempre sob a capa de o fazerem em nome do povo e do poder que este lhes conferia.
Se ‘poder’ significar que é ‘lícito fazer’, vale a pena perguntar se seria legítimo a alguém com o poder de ler o pensamento dos outros vir a fazê-lo. Invoco esta hipótese que é imagem de uma fronteira que ainda não foi possível transpor, mas que, seguramente, muitos gostariam de superar. Ora, imagine-se que alguém, um dia, tivesse esse poder. Porque o ‘pode’ fazer, tem legitimidade para o fazer? Quais os limites que devemos aceitar impor-nos? Ou, em definitivo, o limite será o do poder? Só não devemos fazer o que não podemos fazer? Ou ainda há lugar para a ética personalista e humanizadora?
Não será destes messianismos que falava o Presidente da República, no discurso do dia da liberdade? Que liberdade pretendemos? A de uma vontade arbitrária, discricionária, entendida como puro voluntarismo do indivíduo, ou a de uma vontade que segue a inteligência e respeita a luz da verdade?
É preciso olhar para diante para saber sobre que chão pousamos os pés. Mas muitos deixaram de erguer o olhar tão sumidos estão na vertigem do presente.
Se queremos continuar a viver em sociedade, não podemos deixar que a desconstrução vença. Porque sairemos derrotados, como os filhos de todas as revoluções.