Há uns 17 anos, como os gatos são os meus animais preferidos, desejei ter um especial, que ficasse de tal modo preso a mim que chegasse a ser como que a minha sombra. Que gostasse de carinho e de colo. Que fosse lindo e meigo, divertido e amigo incondicional. Cada gato, como cada cão ou qualquer animal, tem um modo de ser muito peculiar, de tal modo que se pode dizer que, no comportamento básico, não há dois gatos iguais. Um dia, ao vir das aulas de Educação Moral que eu lecionava, numa manhã chuvosa, vejo um pequeno ser, todo molhado. Cabia na palma de minha mão. Siamês de raça. Lutava pela sobrevivência, pois parecia decidido a arranjar dono ou a morrer na estrada. Parei o carro e ele veio gritando na minha direção. Outra pessoa se encantou com o gato cheio de vida, mas tão pouco vistoso, por ser pequenino e estar sujo e cheio de fome.
Acabei por ficar com ele. Mais pulgas que pelo… Bem recebido pela gata que eu já tinha, faltava ver a reação de uma enorme e linda pastora alemã que infelizmente já morreu há quatro anos. Depois de dois banhos e comidinha, o gatinho passou a noite sozinho num quarto. No dia seguinte, deram-se as apresentações. A pastora apaixonou-se pelo pequenino a adotou-o de imediato, levando-o na sua boca para o seu cantinho. O gato praticamente podia dormir dentro da boca dela, tal o tamanho de um e de outro. E durante semanas a fio, lá víamos a Asa, a nossa cadelinha, com a cabeça do gato na boca, abanando-o e brincando com ele, enquanto ele agarrava as suas patinhas ao focinho da cadela, para melhor se segurar. Um dia alguém não acostumado com esta festa chamou-me, aflito, pois a “cadela vai comer o gato”. Foi em atenção a isso que o gatinho ficou a chamar-se Chupeta… o que não deixava de ser meio caricato, pois por vezes eu abria a janela para o chamar e as pessoas que passavam ouviam o padre a gritar “Chupeta, Chupeta”. Imagino os comentários graciosos.
E foi passando o tempo. Durante dezasseis anos, esse bichinho lindo correspondeu à letra aos meus sonhos. Meigo, carinhoso, agarrado a mim, nunca me arranhou ou incomodou, alegre. Eu era a luz dos seus olhos. E, já velhinho, há dias, não quis morrer sem me dizer um adeus sentido com um miar que jamais esquecerei. Praticamente morreu nos meus braços. Ainda dói, pois os animais são um dom de Deus. Ensinam-nos que o amor deve ser incondicional, ainda que nos pareça que o instinto os leva a aproximarem-se de nós pela comida.
Chupeta foi a coisa mais linda que recebi nos caminhos da vida. Sei que há a família, muita gente linda, mas esse gato não era como os outros. Tive o privilégio de ser adotado por ele para ser o seu humano. Com ele viveram mais duas gatinhas lindas, mas diferentes dele, ambas também já falecidas, pois os anos passam e há um momento em que nos vamos vendo na idade das perdas de tudo o que, no mundo, nós amamos.
E isto tudo eu conto, não para partilhar a minha relação de amor com um gato, o que para muita gente pode soar a ridículo, sobretudo para os que não gostam de animais. Queria, sim, apresentar o que considero utópico, mas muito frutuoso, se na Igreja nós fôssemos pessoas meigas e carinhosas umas para com as outras, atenciosas e incondicionalmente amigas, sobretudo nos conventos, colégios e seminários, onde se administra formação.
Por vezes criamos seres frios, que apresentam o rosto de uma Igreja legalista e severa, que coloca a pessoa humana abaixo de uma norma, que pode ser contornada, e que muitos contornam para satisfazer as amizades, mas são exigentes com os demais, não abrindo mão de coisa nenhuma. Tanta gente ferida, na nossa Igreja, pelo mal atendimento nos cartórios e na vida. Também me arrependo de alguns casos em que fui culpado e não consegui reparar com um pedido de perdão. Tantas religiosas cujos valores são menosprezados em nome de uma obediência, muitas vezes imposta pelo orgulho e prepotência de quem manda, tantos jovens excluídos da caminhada sacerdotal, só porque pensam diferente, nesta terrível e terrorista catalogação entre conservadores e progressistas, quando há lugar para todos, na complementaridade. Tanta falta de compreensão nos poucos confessionários que funcionam, em que a pessoa penitente é julgada e não acolhida com misericórdia, como tanto fala disso o Papa Francisco, que passa a vida a pregar no deserto.
Para mim, que não me considero modelo de coisa nenhuma, pois “só sei que nada sei”, cada convento, cada seminário, cada colégio, cada lar de velhinhos, deveria ter cães e gatos, confiados ao cuidado de um grupo de seminaristas, ou noviças, ou idosos, ou alunos… Se o cão nos ensina a fidelidade da amizade incondicional, morrendo connosco se for preciso, o gato, para além da beleza delicada que inspira os desfiles das top models do mundo inteiro, é um ser que nos ajuda a entender o nosso amor pelos outros, respeitando espaços e ideias diferentes. O gato é quem controla a relação, não o seu chamado dono. Ele é quem diz o que quer e nos exige uma total obediência ao seu calendário biológico: comer, lavar-se, dormir, brincar, necessidades… E dormir muito, as 16 horas a que, no mínimo, tem direito. Não serve para mais nada senão para educar a atitude do homem diante da exigência do outro e encher as nossas casas de encanto e alegria.
Alguém disse que é a única possibilidade de termos a exuberância de um tigre em casa. Conheci freiras que envenenavam gatos, ou os atiravam dos andares altos dos conventos para morrerem na queda. Conheci conventos que excluíram religiosas daquela província por elas terem um jardim ou uma horta, o que levava à mofa das irmãs ditas intelectuais, mas que se concorressem com a polícia feminina da Gestapo iriam ganhar, sem dúvida.
O que já vi faria perder a fé nos consagrados, nos leigos, em nós padres, o que acontece com muita gente maltratada pelos mesmos em hospitais, colégios… fazendo com que, como uma vez ouvi um amigo meu dizer, quando se encontra um consagrado bondoso, até parece que são santos. Nem por isso deixo de os amar e ajudar, claro, mas o mal vem da formação, da ausência de uma educação psicológica e do desconhecimento dos temperamentos, que deveriam ser estudados a fundo, de muitas coisas complexas da educação e da falta de algo que ocupe, não só como hobbie, mas como algo produtivo, como jardins, horta, animais domésticos, e a escola gratuita e permanente, na formação da personalidade, que é cuidar de um gato e de um cachorro. Tantos por aí abandonados nas ruas e canis, ansiosos por mostrarem o amor que têm e o quanto nos podem educar e ajudar no respeito pela diferença e liberdade do outro. Fica o convite, apesar de o considerar utópico.
Vitor Espadilha