Iconoclastas

A palavra “ícone” refere-se a imagem sagrada. O ícone é uma pintura, normalmente adornada com peças valiosas, que implica uma preparação de oração, do pintor, normalmente monge, embora hoje a atividade se tenha industrializado, e com jejum, pois o oriental cristão acredita que, mais do que uma representação, como acontece com as imagens na Igreja ocidental, o ícone é a presença viva e atuante daquele que ali se representa. Por isso, a mulher que limpa o rosto de Jesus, que segundo a tradição se chamaria Berenice, passou a chamar-se Verónica, forma latinizada do seu nome, ou, popularmente, a que traz consigo a “Vera Icona”, ou seja, a verdadeira imagem de Jesus. Por curiosidade, essa imagem venera-se em Manipello, na Itália, e é considerada um verdadeiro milagre, até porque se encaixa perfeitamente com o Sudário de Turim, e o “mandillion” de Oviedo.
A Verónica, segundo outra tradição muito antiga da rota francesa dos “amigos de Jesus”, também caminho de Compostela, casou-se com Zaqueu (que mudara o nome para Amadeu) e estaria sepultada em Santés, perto de Bordéus, onde está o seu santuário, e Zaqueu-Amadeus, no sul da França, dando nome ao santuário de Rocamadour. Lendas interessantes que fizeram surgir cidades, rotas e santuários, ainda hoje cheios de vida.
Este amor pelo ícone como Alguém que se venera ou adora deu origem, na Igreja, em certas épocas, sobretudo nos séculos VIII e IX à crise iconoclasta, que criou muita confusão, um concílio em Niceia e outro em Constantinopla, e muitos mártires. Havia santos dos dois lados, pois uns se fundavam na necessidade de não adorar imagens, como diz a Bíblia no Antigo testamento. Outros justificavam-nas pelo facto de Deus ter adquirido humanidade em Jesus Cristo, sendo “imagem do Pai”. Para o Ocidente, as imagens e pinturas serviam de catecismo, pois o povo era analfabeto, também na fé… Para o oriental, é a própria presença de Deus.
Condenado o iconoclastismo, o culto dos ícones difunde-se, hoje mais ainda, também na Igreja ocidental, graças ao movimento de Taizé, entre outros. Os grandes centros de produção sagrada são o Monte Athos, na Grécia, e os seus conventos filiais em todo o mundo, e as comunidades católicas das monjas de Belém, que misturam, como cartuxas, a espiritualidade de São Bruno e as práticas orientais de encontro com Deus. Também é curioso que Bernadete não gostava da imagem colocada na gruta de Lourdes, mas quando viu o ícone de Nossa Senhora de Cambrai, feio para nós, ela teria dito: “Esta é a Senhora que eu vi na gruta!”
Escrevo isto ao ver o Estado Islâmico destruir as imagens da Antiga Assíria, por serem pagãs, coisa que os talibãs já tinham feito com os Budas do Afeganistão, ou os cristãos, com as pinturas dos faraós em todo o Egito, ou dos deuses maias e aztecas, sob o pretexto de serem do demónio. Na Bíblia, dá-se a destruição dos ídolos pelos soldados do Povo de Israel. E os muçulmanos e hindus destruíram as nossas imagens católicas. A mesma destruição verificamos em vários ramos de protestantes e seitas, como a IURD ou as Testemunhas de Jeová.
Mesmo na Igreja católica, depois do Concílio Vaticano II, por uma péssima interpretação da liturgia ensinada pelo mesmo, imenso património das nossas igrejas, sobretudo barroco, foi destruído e queimado pelos nossos sacerdotes. Imagens foram colocadas em arrecadações, museus e sacristias, quando não no lixo, criando Igrejas vazias de símbolos, ou com símbolos que o povo simples não sabe ler nem apreciar. Crise iconoclasta de ontem, de hoje e de sempre. Por vezes também provocada pelo exagero e pelo fanatismo e superstição, dos que têm imagens e as veneram.
Hoje vende-se em Fátima uma Iemanjá, que é uma entidade afrobrasileira, ao lado da Senhora de Fátima, e não é a primeira vez que me pedem para abençoá-las, pensando que se trata de Nossa Senhora das Graças ou de uma santa. Para não falar no imenso mau gosto na confeção de imagens. Algumas mais assustam do que promovem bons sentimentos, sobretudo nossas senhoras de Fátima de nariz ao lado ou boca torta, de mãos inchadas ou pés com seis ou sete dedos, como já vi. Não admira que a capela de Redouça, única no seu estilo, por ser mais cultural que ecuménica, tenha sido alvo de muita crítica, apesar de ter a aprovação de teólogos muito considerados, de ter merecido um programa de televisão e hoje ser património cultural de Cedrim do Vouga, em Sever do Vouga. E nisto tudo pensei ao ver os crimes culturais da ignorância, quando a religião de hoje anula os valores de ontem, destruindo-os pura e simplesmente, fazendo muitos pensarem que a religião só serve para destruir a cultura, por vezes milenar.
Mas, o que mais me choca é que, a par destas realidades, os mesmos iconoclastas matam pessoas de um modo que faz inveja a Hitler ou a Estaline. Vemos uma procissão de gente assassinada em todo o mundo, pelos mais diferentes motivos, desde o aborto, que é crime e assassinato do inocente não nascido, até assaltos, violações e decapitações filmadas, gente cozida em jaulas, crianças enterradas vivas ou esmagadas pelos pés dos sacerdotes islâmicos do fanatismo, entre outras correntes de pensamento que não têm problema em matar, para excluir e silenciar. Acredito que até dentro da própria Igreja… Vemos o sofrimento de tantos homens obrigados a calar suas ideias, ou opções, para se salvarem instituições ou regimes políticos. Uma multidão de homens e mulheres, verdadeiras imagens do Deus vivo, dividida em pretos e brancos, europeus ou chineses, gays e heteros, católicos e protestantes, de etnias variadas em África, como foi no Ruanda, ou silesianos e polacos, xiitas e sunitas… Enfim, uma diferença que, em vez de complementar, leva à pior das crises iconoclastas, uma diferença que está presente em toda a história da humanidade: a dor ou a morte de homens e mulheres, pelo simples facto de terem nascido diferentes dos outros que detêm o poder… Por isso, ao olhar para a imagem de Jesus Cristo, imagem do Pai, somos convidados a reconhecer que Deus está presente nas suas imagens, ícones vivos, que têm olhos para brilhar, lábios para sorrir e coração cheios de amor e beleza a palpitar: os humanos, nossos irmãos.
Vitor Espadilha