Nem só de templos vive o homem

O templo importava. Há um aforismo judaico, contado pelo cardeal Ravasi num dos seus livros, que diz: “O mundo é como o olho: o mar é a órbita, a terra é a íris, Jerusalém é a pupila, e a imagem nela refletida é o templo”. O templo para os judeus importava. É certo que antes da construção do primeiro templo (por Salomão, no séc. X a.C.) houvera duas correntes, uma que dizia que Deus não podia ser contido num templo, por mais belo, grandioso, sublime que fosse, e outra que queria precisamente uma casa para conter a Arca da Aliança, que por sua vez continha as tábuas de lei onde estavam inscritos os mandamentos que se proclamam na primeira leitura desde domingo (a Arca, digam o que disserem todos os romances, filmes e salteadores, foi vista pela última vez em 586 a.C., quando os babilónios de Nabucodonor invadem e destroem Jerusalém e o seu templo). Para todos os efeitos, os judeus veneravam e amavam o seu templo, que, no tempo de Jesus, era o “segundo templo”, construído no séc. VI a. C. e restaurado por Herodes. Apesar de ser cruel e perverso, o rei fazia umas coisas que caíam bem no povo. Tornar o templo resplandecente foi uma delas.

 

O templo importava como quase mais nada. É abundante a Palavra de Deus, principalmente nos salmos, que realça o valor do templo. “Amo, Senhor, a beleza da tua casa e o lugar onde reside a tua glória. Os teus servos amam as pedras de Sião” (Sl 26,8). “Até os pássaros encontram abrigo e as andorinhas um ninho para os seus filhos, junto dos teus altares, Senhor do universo, meu rei e meu Deus” (Sl 84,4). “Quem poderá subir à montanha do Senhor e apresentar-se no seu santuário?” (Sl 24,3).

 

O novo templo. Pois Jesus, que na semana passada subiu ao monte para se transfigurar, esta semana “sobe” à montanha do Senhor para realizar um sinal no templo. No coração da fé judaica, que é a fé de Jesus, realiza um ato que é provavelmente o gesto evangélico que nos causa mais desconforto. Nunca nos habituamos a um Jesus violento. Um Jesus que estraga a vida dos que lutavam pela sua vidinha e atinge o local mais sagrado do judaísmo. O livrinho da caminha quaresmal proposto pela Diocese de Aveiro explica: “Não se trata dum sinal de poder, mas um gesto profético. O evangelista joga intencionalmente com a ambiguidade do verbo grego eghéiro, que significa tanto significa «levantar», «erguer», como «ressuscitar». Ao indicar a sua ressurreição, Jesus afirma que iria transformar o velho templo (de pedras) num novo templo que revelaria a sua divindade. O templo identifica-se, assim, com o seu corpo; é o sinal de Jonas de que falam os evangelistas. Percebido à letra pelos seus opositores, apenas captado pelos discípulos após a ressurreição de Jesus, este sinal anuncia a grade substituição que se irá operar. Todo o verdadeiro culto deixará de estar ligado ao templo de Jerusalém para se deslocar para a pessoa de Jesus, verdadeiro Templo de Deus em que se realiza realmente o encontro de Deus e o homem.”

 

Qual o nosso templo? Os judeus pensavam que os sacrifícios no templo (oferecer um boi, um cabrito ou, por menos dinheiro, uns pombos) agradavam a Deus. Assim, quem mais dinheiro tivesse, mais podia agradar a Deus. Nós não precisamos destes sacrifícios nem de ir a Jerusalém ou a qualquer outro lugar “sagrado”. A minha relação com Deus ainda se insere numa via de aplacar o medo e de fazer negócios? Ou vale mais a confiança pessoal, o diálogo amigo que é a oração? Depois da viragem provocada por Jesus, temos de perguntar: Será que o nosso templo ainda se assemelha muito com o velho? Estará a nossa relação com Deus demasiado dependente de tempos, templos e lugares e não tanto de uma pessoa (Jesus) e do amor pelas pessoas (os outros cristos)?