O estranho caso dos ateus praticantes

Dias Positivos Já toda a gente ouviu falar dos católicos não praticantes, aqueles que, como já alguém disse, são “ciclistas não pedalantes”. Acreditam que vale a pena andar de bicicleta, mas não pedalam.

Com a eleição de Bento XVI, revelou-se uma outra espécie de pessoas: os ateus praticantes. Não acreditam em Deus nem na Igreja (ateus…), mas têm opiniões contundentes sobre os seus chefes e as suas questões internas (…praticantes). O Bispo de Aveiro referiu-se a eles na última semana: “Quando vemos pessoas que se dizem agnósticas a opinar sobre quem e como devia ser o papa e a mostrarem-se desiludidas com a eleição, estamos perante um contra-senso que se respeita, mas não se entende. Nostalgia, apreço pela acção da Igreja…?”

Curioso, nesses ateus ou agnósticos praticantes, foi que quase todos desenvolveram raciocínios do género: “Eu cá sou ateu/agnóstico, mas tenho a dizer que…”

E disseram muito. A começar por Mário Soares, que ficou muito desiludido. Eis outras opiniões: “A vitória de Ratzinger é uma derrota clara para a Igreja Católica” (Luís Osório, A Capital). “A partir desta semana, o rosto da Igreja é o rosto da intolerância e do dogmatismo de Ratzinger” (Daniel Oliveira, Expresso). “Com a escolha de Joseph Ratzinger para Papa (…), preferiu-se dar um valente soco na renovação da Igreja” (Pedro Miguel de Almeida, Expresso). “Uma enorme desilusão, quando foi anunciado o nome de Joseph Ratzinger” (Armando Rafael, Diário de Notícias).

Até José Saramago teve um súbito acesso de fé: “A inquisição subiu ao poder. Deus me acuda com o novo Papa” (El Mundo). João Pereira Coutinho, no Expresso, fez uma exegese perspicaz, aplicável a outros ateus: “Se Saramago, um ateu, afirma que Roma fez a pior escolha, isso significa que Roma não fez a pior escolha”. E Vítor Rainho, no mesmo jornal, concluiu: “Os ateus parecem ser os mais ofendidos com a escolha de Ratzinger”. Só um não ficou ofendido: “Como não sou de ‘obediência católica’ (…), não fiquei desapontado com a escolha”, mas aproveitou para dissertar longamente sobre a Igreja e a geopolítica europeia (“O Sacro Império e os continentes”, José Medeiros Ferreira, DN). E houve um que, “não sendo cristão”, gostou: “Haverá Cardeal mais inteligente, mais intelectual, mais apaixonado pelo pensamento humano do que Ratzinger?” (“Olhe que há conservadores bons”, Miguel Esteves Cardoso, DN).

Um ateu ou agnóstico a falar sobre a Igreja é estranho, mas ao mesmo tempo compreende-se. É estranho, porque seria como um católico pronunciar-se sobre a eleição do presidente de uma associação de ateus. É estranho, porque não gostam que a Igreja se intrometa nas suas vidas, mas gostam de se intrometer na vida da Igreja. Mas compreende-se, porque estamos numa sociedade em que todos têm direito à opinião. Mais, no caso da Igreja Católica, pode-se viver com ela ou contra ela, mas não sem ela. Os ateus/agnósticos tinham de falar dela, porque sabem que é a única instituição verdadeiramente global, que tem influência na vida das pessoas, que é como um farol para o mundo (a virtude dos faróis não é a mobilidade, a mudança; é a solidez e a constância). No fundo, têm-lhe um ódio de estimação. Estão atentos aos seus movimentos. E, quando a Igreja estiver doente, também eles vão sentir-se, pelo menos, ligeiramente constipados ou com uma dorzinha de cabeça.

O que os ateus praticantes fizeram foi uma grande confissão do poder (a luz do farol e não o edifício) e atracção da Igreja Católica. Uma grande prova de fé na Igreja Católica. Maior que a de muitos católicos… não praticantes.