O Manuel e o Zé

Os nomes não interessam. Poderiam ser António e João. Seja como for, conheci os dois. Já faleceram. E deixaram em mim uma marca indelével. Morreram de tristeza. É isso mesmo: Morreram de tristeza.
Quando uma pessoa chega ao confessionário e diz que não tem pecados, pois não mata nem rouba, interrogo-os se nunca fizeram chorar alguém. Tirar um segundo de paz a alguém é roubar. E tirar a alegria, por causa das nossas maldades, é matar, pouco a pouco. A acumulação de pequenas mágoas e indiferenças matam. Não se vê, não se sente, mas matam. Não digo nos casos pontuais em que, por vezes, temos de educar com energia e isso faça sofrer um aluno, um amigo, um parente. Mas, o dia a dia, no trabalho, na família, no casamento, na escola… hoje uma facada, amanhã outra, isso mata. E muitos podemos ser assassinos. Foi o que aconteceu com o Zé e o Manuel.
O Zé era um homem híper-alegre. Em muitos anos, nunca o vi senão a rir e a brincar. Cara de maroto, era homem para levar a vida na alegria. Uma voz esplêndida. Cantava lindamente. Um dia, veio ter comigo. Chorava. Nunca pensei naquele homem, já avô, a chorar. Inconcebível. Mas chorava, e como! E disse: “Do que mais tenho medo ao terminar o meu dia de trabalho na pequena empresa é regressar para casa”. Lá, a sua família, que não faltava à Missa, não fazia nenhum caso dele. E sempre foi assim. A esposa não lhe prestava atenção e os filhos só queriam o seu dinheiro. Não havia amor. Por isso, o Zé não tinha um lar. Mais tarde, entregou-se à bebida. Os bêbados e os adúlteros são pessoas viciadas, no conceito de todos. Mas o Zé não bebia a esse ponto. Um dia começou a beber de mais, como muitos procuram no adultério o que lhes é negado em casa por esposas muito católicas (conheço tantos). E um dia, o Zé morreu. De excesso de bebida? Não, de tristeza. Uma tristeza imensa que nem a Igreja nem a fé de esposas e filhos, nem a bebida podiam apagar. Morreu de solidão e desprezo, embora tivesse família numerosa. Morreu de indiferença. Morreu como um indigente, deixando como fruto da sua vida uma linda casa para a família, terrenos e uma sepultura onde não faltam flores nem velas… Uma campa de um homem que morreu com saudades de ser amado.
Com o Manuel, foi mais ou menos o mesmo. A esposa é daquelas que se desdobra em atenção com todos. O que uma pessoa precisasse, ela ali estava, disponível, sorridente, atenciosa, eficaz. Na igreja fazia tudo. Não havia grupo ao qual não pertencesse. Oração era com ela. Grande católica, modelo de vida cristã, dizíamos. Mas, quando chegava a casa, o Manuel, já reformado, lá estava. Cozinhava, lavava, passava a ferro. Tentava multiplicar atenções. Tinha errado, em novo, nas aventuras de quem vivia numa grande cidade como as que há em Espanha. Foi lá que o conheci e privei com ele e a sua família. Mas a tal senhora, sua esposa, deixava a máscara de boa cristã no bengaleiro da porta da casa, e o tom de voz e atitudes eram de aspereza, desprezo, a ponto de o Manuel comer sozinho na cozinha, dormir noutro quarto. Não havia filhos para buscar consolação ou talvez mais desprezo. E isso era assim dia a dia. Hoje, amanhã…
Para os da Igreja, a senhora católica tinha um sorriso e um abraço; para o marido, desprezo e más palavras. E o Manuel começou a beber, a buscar consolação noutras mulheres, até que um dia, num amanhecer de primavera, o Manuel não acordou. Funeral de lágrimas, montanhas de flores, Missa cantada. Quase que pude sentir, naquele rosto defunto e marcado pela mágoa, cair uma lágrima de tristeza. Tanta coisa, e ele tão só, até naquele caixão de luxo, porque o que o matou foi simplesmente a tristeza imensa de não ter sido amado, apesar da fé que em sua casa se professava ardentemente.
Como estes dois, tantos e tantas. Conheço-os. Você também os conhece. Quem sabe em que lado da aventura você está situado em relação ao seu pai, à sua mãe, ao seu filho, ao seu cônjuge, ou seu irmão.
No Lar de Moita, tínhamos uma idosa finíssima no trato, na elegância e na cultura. Uma vez por mês ela ia ao cabeleireiro ou pintava os lábios e unhas. Linda. Sentada no janelão da casa de idosos, olhava para o pátio, ansiosa. O filho viria à secretaria buscar o dinheiro que sobrava da pensão da mãe. Ele chegava, passava diante dela, tratava dos seus assuntos e, sem entrar para beijar a mãe ou até acenar-lhe, ia-se embora até ao mês seguinte. O resto da semana, para esta mulher, era mergulhada numa tristeza que fazia dela uma mulher muda, embora sempre nos cumprimentasse com um doce sorriso. Pode até ter sido uma mãe desatenta, mas, para o filho, o único filho, ela era apenas os vinte euros da pensão. E um dia, sem dor física, sem doença anunciada, a pobrezinha morreu, provavelmente no silêncio da noite, depois de ter deixado cair as últimas lágrimas que conseguia derramar. Morreu só, morreu sem casa, morreu sem um beijo do filho que gerou. Morreu de tristeza. Eu vi e chorei por ela.
Um dia, ao contar isto numa Missa, sobre as personagens destas histórias, que são reais, registei duas reações. Uma jovem esposa veio ter comigo para dizer que ia correndo para casa, pois queria contar isto tudo ao marido, não praticante. Eu aconselhei-a a cobrir o seu marido de beijos. Uma outra, muito ativa na Igreja, mas que passa a vida a queixar-se do marido bêbado que bateu nela, ficou tão ofendida, pensando que a homilia era uma indireta contra ela, que passou a semana a chorar de raiva contra mim, e, de momento, nem à Missa vem…
Casos para pensar. Ainda vou continuar a estar em funerais de homens e mulheres que vão continuar a morrer por causa de não saberem o que é um abraço, um beijo, ou um pouco de amor.
Vitor Espadilha