Para não nos esquecermos de existir

Cuidado de si Um título para não deixarmos morrer a convicção – ou, até, para a criarmos – de que também somos destinatários do nosso desvelo e amor. Não por enclausuramento narcísico ou viragem umbilical. Mas porque somos, isso sim, o primeiro dom/presente que a Vida – Deus – oferece a nós próprios. Somos o dom que Deus nos dá, dando-nos a nós mesmos. Qualquer gesto altruísta, a generosidade, nascerá daqui: da convicção íntima de sermos doados a nós mesmos. E é por isso que nos podemos oferecer aos outros. Por darmos o que temos. Se não nos possuímos, como poderemos doar-nos? Se não nos apropria-mos do que somos, como poderemos desapropriar-nos para os outros?

O cuidado de si, antes de mais, declina-se como cuidar do corpo. Não por um critério estético que obedece aos padrões da moda, mas como imperativo ético: o corpo é a encarnação do dom que se recebe, é o que configura o estarmos «aí no mundo». É bom não esquecer o maltrato a que, amiúde, o sujeita-mos: no âmbito das dependências, do escasso repouso, dos apetites vorazes e, até, das várias ginásticas e musculações a que nos submetemos. Um critério a ter em mente pode ser o de uma via intermédia: nem alimária, nem estátua brônzea.

Outra vertente implica cuidar da psique: do modo, saudável ou não, como gerimos as nossas emoções, os pensamentos, os diálogos interiores, o agir. Também aqui não apenas por um critério de higiene mental – importante, mas redutor -, mas porque é a psique que nos coloca em relação com o mundo, com os outros, connosco próprios, com Deus. Sendo o sistema com que processamos as nossas vivências – das mais superficiais às mais profundas – convém-nos mantê-lo flexível, aberto, lúcido e, na medida do possível, aderente à realidade que nos circunda.

Declina-se também como cuidar das relações interpessoais: participar na vida cívica ou comunitária, nutrir a amizade, arriscar o amor. Não por um refúgio no comunitarismo – que aliena, transformando-nos em números -, ou, apenas, por imperativo moral – derivado do facto de sermos sociais -, mas, sobretudo, porque o amor é o verdadeiro rosto dos humanos.

Por fim, mas não menos importante, o cuidado de si declina-se como cuidar do espírito, termo abrangente que engloba a relação com o Absoluto – que nós cristãos tratamos por Deus de Jesus Cristo -, a assunção de um universo de valores e a busca de sentido/significado para a existência. Não porque descobri-mos a moda das «espiritualidades» – o que nem é mau de todo! – ou porque temos pavor do desconhecido trágico que nos espera em cada incerteza, em cada doença, em cada morte. Mas para darmos voz ao desejo – aninhado no fundo do nosso eu profundo – que clama pelo infinito, pela plenitude, pela eternidade.

Um autor que muito prezo, talvez noutro texto revele o nome, costuma dizer que o cuidado de si tem uma única finalidade: a de não nos esquecermos de existir. Assim sendo, o cuidado de si torna-se tarefa primordial, desafio à própria existência, apelo que a vida nos faz. Ouso dizer, é chamamento divino.