A homilia do Papa, na Celebração de encerramento do Jubileu da Misericórdia, fundamenta o conteúdo da sua deliciosa Carta Apostólica assinada no dia seguinte – “Misericordia et Misera”, título retirado da expressão de Santo Agostinho ao comentar o encontro de Jesus com a mulher adúltera.
Começa Francisco por desmontar a tentação de conceber o Reino de Deus como qualquer forma de dominação: “…A grandeza do seu reino não está na força segundo o mundo, mas no amor de Deus, um amor capaz de alcançar e restaurar todas as coisas”.
Decorre desta essência do reino que “não nos condenou, nem sequer nos conquistou, nunca violou a nossa liberdade, mas abriu caminho com o amor humilde, que tudo desculpa, tudo espera, tudo suporta (cf.1Cor.13,7). Unicamente este amor venceu e continua a vencer os nossos grandes adversários: o pecado, a morte, o medo”. E essa é a beleza de ter Jesus como nosso Rei, que deveremos compartilhar com alegria. Partindo da observação dos protagonistas da cena do Calvário, o Bispo de Roma qualifica esses protagonistas, além de Jesus, em três grupos: “O povo que olha, o grupo que está aos pés da cruz e um malfeitor crucificado ao lado de Jesus”.
Primeiro, o “povo que, levado pelas próprias necessidades, se aglomerava à volta de Jesus e, agora, se mantém à distância”. Muitas vezes, nós replicamos esse povo, na nossa vida: “Vendo certas circunstâncias da vida ou as nossas expectativas por realizar, podemos também nós ser tentados a manter a distância da realeza de Jesus, não aceitando completamente o escândalo do seu amor humilde, que interpela o nosso eu e o desassossega”. Um sério exame de consciência se impõe à nossa coerência de vida cristã: “«Que me pede o amor, para onde me impele? Que resposta dou a Jesus com a minha vida?»”.
Depois, um segundo grupo, com vários agentes: os chefes dos judeus, os soldados, o “mau ladrão”. “Todos eles escarnecem de Jesus, dirigindo-Lhe a mesma provocação: «Salve-Se a Si mesmo» (cf.Lc.23,35.37.39). …tentam Jesus, …para que renuncie a reinar à maneira de Deus e o faça segundo a lógica do mundo: desça da cruz e derrote os inimigos!”. A tentação da eficácia, a ânsia de nos libertarmos das dificuldades, o desejo de um reconhecimento na praça pública… Coisas que nos movem tantas vezes a “descermos da cruz”, cedendo à atração do poder e do sucesso, como caminho mais fácil e rápido, mesmo para difundir o Evangelho, “esquecendo depressa como atua o Reino de Deus”.
Por fim, “outro personagem, mais perto de Jesus, o malfeitor que O invoca dizendo: «Jesus, lembra-Te de mim, quando estiveres no teu Reino» (Lc.23,42)”. “…não se fechou em si mesmo, mas, com os seus erros, os seus pecados e os seus problemas, dirigiu-se a Jesus. Pediu para ser lembrado, e saboreou a misericórdia de Deus: «Hoje estarás comigo no Paraíso» (Lc.23,43). Deus, logo que Lhe damos tal possibilidade, lembra-Se de nós. (…) Deus não tem memória do pecado, mas de nós, de cada um de nós, seus filhos amados. E crê que é sempre possível recomeçar, levantar-se”.
Percebemos, a partir destes pressupostos, o que diz Francisco quase a terminar: “Com efeito, embora se feche a Porta Santa, continua sempre escancarada para nós a verdadeira porta da misericórdia que é o Coração de Cristo. Do lado trespassado do Ressuscitado jorram até ao fim dos tempos a misericórdia, a consolação e a esperança”. Nestas convicções, nascem as decisões e indicações pastorais do Papa, plenas de lucidez, operatividade, esperança e ternura, da Carta Apostólica “Misericordia et Misera”.