Quando a realidade supera os “reality shows”

TERESA CORREIA
Professora

Num mundo de vidas reais e de “reality shows”, o contraste é chocante: viver num campo de refugiados, porque se foge da guerra e de condições completamente adversas, ou viver numa zona da Sibéria, como propõe um programa russo de “reality shows”, em que se assina um documento em que se aceita tudo e qualquer consequência, mesmo a da morte! Por que não propor aos concorrentes que se transformem em verdadeiros heróis, desafiem a vida real e vivam num campo de refugiados a apoiar os milhares que, metaforicamente, assinam um documento que defende a vida digna longe da guerra, da fome, dos atentados e dos traficantes?

Alunos da Esc. Sec. Mário Sacramento na recolha de bens para os refugiados na Sérvia

Nessa situação verdadeiramente desafiante, porque é da vida real que se trata, poderiam contactar com condições extremas de sobrevivência. Poderiam testemunhar a aventura a que os refugiados chamam “jogo”, que consiste em tentar escapar às autoridades fronteiriças, que os espancam e que atiçam cães cujas mordeduras deixam marcas profundas no corpo. MALI (nome fictício) tentou 15 vezes “o jogo”, depois de meses a percorrer um caminho sinuoso desde a Síria até à Sérvia. Aí, num campo de refugiados instalado às portas da estação de caminho-de-ferro de Belgrado, sobrevive com temperaturas abaixo de zero, ora em tendas ora em barracões, com milhares de crianças, adolescentes e adultos. Esta é a 15.ª vez que regressa por ter sido apanhado pela polícia fronteiriça húngara. Os pés e as mãos não estão em tão mau estado como noutras ocasiões, em que quase não conseguia andar por ter sido despojado das suas roupas e calçado pelas guardas que o mandaram para trás, assim, a caminhar na neve.

E derivamos agora para o cerne da questão: milhares de pessoas fogem da guerra e vários grupos de voluntários saem do seu conforto, porque o desconforto e a humanidade dilacerada dos outros os choca e os move. “Aqui está péssimo, muitos miúdos… aliás a maioria são miúdos desacompanhados… tão triste, sinto-me completamente impotente em relação a isto… Ainda não houve um dia em que não tivesse chorado e já estive na Grécia, na Macedónia… o meu trabalho aí é com “sem abrigo”… mas estes miúdos aqui… assim, parte o coração”, confessa-me Ana Perpétuo, uma das voluntárias portuguesas que há uns meses lançou um apelo, no facebook, para recolha de roupas para os refugiados na Sérvia. Portugal mobilizou-se. Vários cidadãos anónimos, instituições de solidariedade e escolas responderam positivamente; Aveiro não foi exceção. Depois de muita burocracia, as 499 paletes de roupa quente e cobertores doados por portugueses estão quase a chegar a Belgrado. A palete número 500 vai repleta de brinquedos e mensagens de crianças e adolescentes, de mães e de pais portugueses que se comoveram pelas condições desumanas em que as crianças refugiadas vivem. Alguém perguntava: “Serão as informações fidedignas? As imagens não serão forjadas?” E a resposta, numa sociedade em que a desconfiança parece reinar, é dada pelo movimento de solidariedade que supera as expectativas de quem não cruza os braços. Há sempre muitos que acreditam, com Madre Teresa de Calcutá, que o que se faz é uma gota no meio de um oceano. Mas sem ela, o oceano será menor.
Olhando para o trabalho dos voluntários de várias nacionalidades, que podemos acompanhar nas redes sociais, vemos que servir 400 refeições é uma das suas funções, mas percebemos que não é fácil aceitar que várias crianças vão dormir sem jantar, porque a comida não chegou para elas. Outra das situações que pretendem ajudar a enfrentar é aquilo que, para nós, no conforto das nossas casas, não passa de uma rotina: lavar a roupa e dormir numa cama. Os voluntários portugueses alugaram um apartamento onde, à vez, dormem refugiados, para poderem descansar um pouco, lavar a sua roupa, mesmo sabendo que, na noite seguinte, voltarão para as tendas ou para os barracões ao pé da estação de Belgrado. Há ainda um pequeno jardim que plantaram para humanizar um pouco aquele espaço tão triste.
Os voluntários não se movem por credo religioso, mas por acreditarem que o outro é uma pessoa que precisa de atenção e que não pode viver em condições sub-humanas. Afinal, a vida real é já suficientemente crua para se inventarem “reality shows” em que se põe à prova a resistência do ser humano. Não são precisos jogos para o perceber!