Nestas reflexões sobre o Evangelho, ao longo da Quaresma, vamos seguir o que a Diocese de Aveiro propõe para os cristãos na caminhada “Jesus é o Filho de Deus: Escuta-o”.
Animal com má fama. Há animais que não se livram da má fama. A serpente é um deles. Logo nas primeiras páginas da Bíblia, aparece como “o mais astuto dos animais”. Conhece o efeito tóxico do fruto proibido. Tudo faz para induzir o par humano a cometer o terrível erro gastronómico de o comer. A inimizade entre a serpente e o ser humano nasce no Génesis. E parece genética. “Mau/má como as cobras”, diz-se hoje, mesmo que saibamos que são seres sem qualquer capacidade de discernimento moral. E até Jesus partilhou da cultura quase universal que relaciona os animais rastejantes com as piores inclinações presentes nos seres humanos. “Raça de víboras”, disse Ele de alguns fariseus (Mt 23,33). E não consta que estivesse a aludir a qualquer teoria evolucionista. Referia-se, sim, aos que são como os que matam profetas.
Jesus disse também que aos discípulos dá o poder de pisar serpentes e escorpiões (Lc 10,19). “E nada vos poderá causar mal”. Calcar serpentes, por vezes, é como engolir sapos – outro animal com má fama. Se engolíssemos mais sapos, talvez morrêssemos menos vezes, pois o que sai da boca é que torna a pessoa impura (Mt 15,11).
Animal com boa fama. Mas no bestiário evangélico, a serpente também sobressai por qualidades positivas. “Sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas” (Mt 10,16), aconselhou Jesus. E se o povo diz que “o que arde cura”, não estará longe desta ideia a escolha da serpente para símbolo de duas atividades relacionadas com a cura. Por ter veneno, a serpente é capaz de ser especialista em venenos. Quem diz venenos, diz remédios (que em excesso são sempre venenos) e a atividade de produzir e de os administrar. A serpente enroscada num bastão é símbolo dos médicos (os brasileiros dizem que se trata de uma cobra, porque “se o doente ficar curado, o medico cobra; se morrer, cobra na mesma”). Erguida sobre uma taça, é símbolo dos farmacêuticos. Estes símbolos vêm diretamente da cultura grega antiga. Mas baseiam-se numa consideração sobre o poder das serpentes que também está presente na Bíblia.
Fixar o olhar. É do poder de curar que o Evangelho deste domingo fala, relatando o que Jesus diz a Nicodemos, um fariseu que não descendia de víboras.
Como o “médico” Moisés elevou a serpente de bronze no deserto para curar os que eram mordidos pelas serpentes, numa terapêutica espantosa, só pelo olhar (Nm 21,8), também o Filho do Homem será elevado para curar todos os que foram mordidos. E também acontece por uma espécie de ver, ainda que mais sublime, que é o acreditar, o abrir os olhos à luz – de que fala a segunda parte do trecho evangélico.
Do guião diocesano para esta quaresma: “O Filho do homem, no deserto do mundo, será levantado sobre a cruz como sinal de salvação para todos aqueles que sentirem a necessidade de continuar a viver e não se deixarem [voltar a] morder por escolhas erradas. Olhando Jesus, fixando o olhar no amor que Ele manifestou e crendo nele, obtém-se a salvação, a vida na sua plenitude, a vida eterna”.
Fixemos o olhar em Jesus, mas deixemos os pés e as mãos livres para caminhar e agir pelo próximo. “Pratica a verdade e caminha na luz”. Melhor e mais completa cura, não há.