Uma mulher coerente

João Gonçalves Gaspar
Padre e historiador.

Ocorre hoje, dia 08 de março, o Dia Internacional da Mulher. Ao longo de vários anos, tenho-o comemorado com referências a mulheres de Aveiro ou de outras terras. É o que novamente vou fazer.
Não há muito tempo, passei uns dias em Évora. Numa das tardes, fui até à igreja do Carmo; admirei novamente a ‘porta dos nós’, as proporções monumentais do templo, a altura da cúpula e a arte dos retábulos. Depois disso, sentei-me diante do Sacrário e aí ocupei uns minutos no sossego da oração. Quando me levantei, dirigiu-se-me uma senhora, dos seus trinta e cinco anos, que perguntou: – «Porventura, o senhor é sacerdote?» Perante a resposta afirmativa, confirmada pelo respetivo cartão de sacerdote, ela pediu-me o favor de uns momentos, porque desejava ‘reconciliar-se’ pelo sacramento. De parte a parte, não houve interesse em saber os nossos nomes nem os das nossas terras de residência; isso também não importava. Sentámo-nos num banco, ao fundo da igreja.
Saímos, após a ‘absolvição’ e uma curta prece de ação de graças a Deus; todavia, ela deu-me a entender que desejava mais qualquer palavra de um sacerdote. Cá fora, no adro, ficámos de pé a conversar. Continuámos mutuamente como dois desconhecidos; apenas me pareceu que ela, pela tonalidade da fala, não seria alentejana. Disse então mais ou menos, recordando algo da sua vida:
– «Sou uma religiosa consagrada. Pertenço a uma família cristã, cujos membros sempre se comprometeram com atividades eclesiais. A minha mãe é catequista na paróquia, o meu pai é ‘juiz’ da Irmandade do Santíssimo Sacramento e os meus dois irmãos e a minha irmã, todos casados e com filhos, são católicos praticantes e colaboradores nas suas comunidades. Eu, pessoalmente, sinto-me muito feliz. Fui aluna de um colégio da Igreja e, na juventude, decidi-me resolutamente pela vida numa congregação religiosa. Depois do postulantado e do noviciado, professei com os votos perpétuos; contava vinte e dois anos de idade. Cristo manifestou-se-me como luz fulgurante, entrando pelas portas escancaradas da minha alma e dando-me coragem no meu caminhar de amor».
Nesta altura, interrompi o monólogo de quem falava, dizendo: – «Enquanto foi desenrolando a linda história dos seus anos, estive a pensar que em qualquer um de nós resplandece a indefinível luz de Deus. Também, no nosso pequeno espaço íntimo, se pode encontrar a morada esplendorosa de Deus.»
Por graça divina, a minha interferência casual transmitiu um certo conforto à irmã religiosa, que continuou: – «Porém, o que me entristece é que, desde há alguns meses, querem-se infiltrar em mim uns ténues negrumes de escuridão, a pretenderem ofuscar o meu amor a Jesus Cristo; em consequência, distraio-me frequentemente na oração particular e comunitária, não sou caritativa e serviçal como era, olho para as outras pessoas e não procuro descobrir nelas Aquele a quem eu somente quero amar. Tenho tanta pena disto, que me faz nervosa e sem paz na consciência!»
Respondi-lhe, muito naturalmente: – «Nós, os sacerdotes e os religiosos consagrados, somos felizes na medida em que continuamos a corresponder ao primeiro e único Amor, que nos fascinou na idade jovem. Para que isto aconteça, temos de nos fortalecer constantemente em momentos vividos com Deus, na fidelidade ao caminho, que é Cristo, e na graça do Espírito Santo.» A propósito, recordei-lhe as palavras de S. João Evangelista (I, 3, 23-24): – «É este o mandamento de Deus: acreditar no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e amarmo-nos uns aos outros, como Ele nos mandou; quem observa os seus mandamentos, permanece em Deus e Deus nele.»
Terminando este breve diálogo, repeti à irmã religiosa algumas das últimas palavras de uma adolescente de Aveiro, Maria João Xarrama Bergano, que faleceu em janeiro de 1985: – «Deus é tão grande que tapa o universo, mas tão pequeno que cabe nos nossos corações.» E concluí, com um gesto de gratidão: – «Lembro-lhe o conselho do nosso povo de outrora: – ‘Não dês o braço à tristeza, / tristeza é má companhia; / ama a Deus, trabalha e reza, / canta, sorri e confia’. Contudo, mais do que este aforismo, dar-lhe-á ânimo a afirmação de Jesus (Jo, 8, 12): – ‘Eu sou a luz do mundo; quem Me segue não andará nas trevas, mas possuirá a luz da vida’. Tenha coragem; acredite que Deus está consigo, como sua única força.»
Entrámos novamente na igreja, para a despedida. Então, num lampejo de memória, iniciei o texto de uma poesia de Santa Teresa de Jesus, que ela acompanhou sem qualquer hesitação: – «Nada te perturbe, nada te espante; tudo passa, Deus não muda; a paciência tudo alcança. Quem a Deus tem, nada lhe falta; só Deus basta!»
Por fim, cada qual seguiu o seu caminho, ficando-me a recordação de uma mulher que desejava ser coerente consigo mesma e cada vez mais fiel ao seu trajeto de vida.