Set 27, 2020 | Artigo, Documentos, Informações, Recortes
Comunicado de D. José Ornelas, Bispo de Setúbal, a toda a Diocese (26/09/2020)
Acabo de receber a notícia da partida para os braços de Deus do nosso Padre Manuel Bernardo Nobre Soares. Encontrava-se desde a semana passada no hospital de cuidados paliativos Nossa Senhora da Arrábida, em Azeitão, onde, apesar das limitações atuais, teve a possibilidade de ser visitado pela família e por alguns membros do nosso presbitério e por mim próprio.
Vivemos este momento com o luto doloroso que encerra, mas igualmente com a paz e gratidão que nos merece a vida que ele partilhou connosco no serviço da Igreja. Damos graças a Deus pela sua dedicação e bondade, pedimos que o Senhor, Bom Pastor, o acolha nos seus braços poderosos e carinhosos e que faça germinar e frutificar as sementes de humanismo e de fé que o Padre Manuel semeou ao longo da vida.
À família do Pe. Manuel, que, com tanta atenção e carinho o acompanhou na vida e especialmente nestes últimos tempos, exprimo sentidas condolências, em meu nome e em nome da Igreja de Setúbal, dando graças a Deus pelo muito que recebemos deste seu fiel servo.
Agradeço igualmente a dedicação profissional e a proximidade humana das pessoas que acompanharam o Pe. Manuel Soares nos serviços do Hospital Garcia de Orta e do Hospital Nossa Senhora da Arrábida, contribuindo para um percurso de dignidade, de consciência e de esperança, nesta última etapa da sua vida.
+ José Ornelas Carvalho
Bispo de Setúbal
NOTA: O corpo poderá ser velado a partir das 8h30 de segunda-feira, dia 28, na igreja de Santa Maria, Barreiro. Às 11h00 serão celebradas as exéquias presididas por D. José Ornelas, Bispo de Setúbal.
Nota biográfica do Padre Manuel Soares, pelo Padre José Lobato, Vigário Geral da Diocese de Setúbal
O Padre Manuel Bernardo Nobre Soares nasceu no Barreiro em 28 de abril de 1938 e foi ordenado presbítero pelo Cardeal Manuel Cerejeira em 15 de agosto de 1963.
A sua primeira nomeação foi para a paróquia do Lumiar, Lisboa, como vigário paroquial, sendo depois nomeado sucessivamente vigário paroquial de Almada e de Cacilhas. Em outubro de 1984 foi-lhe confiado o cargo de Diretor Nacional da Obra das Migrações, que desempenhou até ao final do ano 2000.
Em 2002, D. Gilberto Canavarro dos Reis nomeou-o Diretor do Secretariado Diocesano das Migrações, exercendo em simultâneo o cargo de Pároco de Vale de Milhaços. A partir de 2014, foi cuidando de diversas capelanias, sendo a última a da Santa Casa da Misericórdia de Almada.
Desde 2008 foi membro da Associação dos Padres do Prado.
Faleceu, a 26 de setembro de 2020, no Hospital de Nossa Senhora da Arrábida, em Azeitão.
Ago 13, 2020 | Artigo, Dioceses, Documentos, Semana Nacional de Migrações
Como sabem, o Papa Francisco, inspirado na Família de Nazaré, escolheu para o 106º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, o tema: “Forçados como Jesus Cristo a fugir.”
São vários os subtemas que dão forma e completam este tema, contudo, escolhi falar sobre o subtema: “Aproximar-se para servir”, uma vez que esta minha escolha está intimamente ligada com o trabalho diário que venho desenvolvendo, voluntariamente, com Migrantes e Refugiados, ao longo de quase 12 anos, muito em jeito de Acolhimento, Escuta, Compreensão, Aprendizagem mútua, e, principalmente, de não permitir que contem apenas como números para as estatísticas, pois, são “Pessoas como tu, como eu, como nós.”
Durante todos esses anos, foi fundamental perceber como a aproximação diária e o servir, independentemente da religião, da cultura, da língua, dos costumes, permitiram vencer medos e preconceitos de parte a parte; aliás, obstáculos que impedem fortemente de nos aproximarmos e de servimos com Amor, e, como conseguiram quebrar barreiras, valorizar o desconhecido, o diferente e fazer Caminho juntos.
Assim, perante uma situação que parece não ter fim e que tende a agravar-se e a aumentar, é , pois, urgente, que, sem medo e sem preconceitos, nos aproximemos e que consigamos ver em cada um dos Migrantes e dos Refugiados, o rosto de Jesus Cristo e ter a bondade e a humildade de abrirmos o nosso coração, num servir constante e generoso, capaz de envolver todos(as) num Amor que dignifique e adoce, e, que, igualmente, ajude a sarar as feridas tão profundas que trazem desenhadas no rosto e no olhar.
Sem dúvida, um Amor que seja capaz de, verdadeiramente, lhes devolver, a Dignidade, a Confiança, a Paz e a Esperança de uma vida melhor.
Rufina Garcia
Secretariado Diocesano da Pastoral Social e da Mobilidade Humana de Portalegre Castelo Branco
Ago 13, 2020 | Artigo, Campanhas, Documentos, Semana Nacional de Migrações
Nasci em Angola, em Junho de 1975, em pleno conflito armado. Da fuga da minha família para Portugal não me recordo, apenas sei que escapamos à morte por sorte.
As primeiras memórias que tenho são dos meus quatro anos. Por essa altura, vivíamos o meu pai, a minha mãe, eu e o meu irmão num quarto de uma pensão, em Ovar. Nesse quarto tínhamos todos os nossos pertences ( que não eram muitos). Foram tempos muito difíceis. Felizmente, em 1980, os meus pais arranjaram emprego em Lisboa e puderam, a muito custo, comprar uma casa na margem sul do Tejo. É aqui, já com cinco anos, que tomo consciência de que era de ” cor”.
Eu o meu irmão estudávamos num colégio onde éramos as únicas crianças negras. Recordo -me perfeitamente de ouvir a minha professora dizer a outra: – a preta é inteligente. Na altura não tive a noção do alcance do comentário. Depois começaram os insultos dos colegas, que gozavam com o meu cabelo, a minha cor e me mandavam para a minha terra. E eu não percebia, para mim nunca tinha tido “cor”, era apenas eu. Depois disto comecei a assimilar que me viam como uma pessoa diferente apenas pelo meu tom de pele. Foram muitas as vezes que fui alvo de racismo e do que hoje chamam buliyng. No entanto, os meus pais sempre ensinaram, quer a mim, quer ao meu irmão a termos orgulho da nossa cor e origem e aos poucos deixou de me incomodar.
Hoje, com 45 anos, posso dizer que continuo a pensar em mim apenas como uma pessoa. Sou descendente de Portugueses, tanto do lado paterno como materno. Vivi sempre, porque já os meus pais assim viveram, mesmo antes da sua fuga para Portugal, no meio das duas culturas, sem nunca me sentir mais portuguesa ou mais angolana. E isto é algo difícil de explicar. Abraço a cultura do país em que nasci, porque assim me foi incutido e estou perfeitamente integrada neste país que me acolheu.
Se me perguntarem se em Portugal há racismo, direi infelizmente que sim. Ainda somos olhados de lado, preteridos no que refere ao emprego e algumas vezes insultados. Existe racismo, ainda que encapuzado, pois existe a vergonha de o admitir.
Dirão que sou “sem terra”, eu direi que tenho o melhor dos dois mundos, sem sentir a necessidade de escolher.
texto: Sara Lopes
Ilustração: Luis David
Ago 8, 2020 | Artigo, Migrantes, Notícias, Semana Nacional de Migrações
«É preciso sentar os extremos e conversar» para haver a reconciliação – Eugénia Quaresma
Foto: Agência ECCLESIA/OC
Lisboa, 09 ago 2020 (Ecclesia) – Os recentes casos de racismo e xenofobia em Portugal levam a diretora da Obra Católica Portuguesa de Migrações, Eugénia Quaresma, a afirmar à Agência ECCLESIA que “é preciso sentar os extremos” para haver diálogo e surgir a reconciliação.
“Conseguir sentar os extremos e conversar, às vezes estão a dizer coisas verdadeiras em ambos os lados mas não se estão a ouvir, é preciso construir uma terceira via de encontro”, defende a responsável.
Eugénia Quaresma aponta que “há erros do passado que precisam de ser corrigidos” como a realidade urbana, os “realojamentos de pessoas que vivem nas periferias e sofrem todas as consequências de ali viver”.
“É preciso trabalhar na inclusão, trabalhar com os descendentes que estão afastados do percurso escolar e isso não está só nas mãos das escolas, há trabalho a fazer com a família e escola para que eles sintam que têm lugar”, justifica.
Uma das faixas etárias que preocupa a responsável são os jovens que não se sentem pertença ou integrados e “esse trabalho pode ser feito na Igreja e fora da Igreja, em conjunto”.
Os grupos de jovens são um exemplo de proposta de grupo de pares, é preciso aprender com o passado, para construir o futuro em conjunto; veja-se o exemplo que o confinamento nos trouxe, por exemplo, ao nível da música, é necessária esta riqueza da diversidade para descobrir o que nos une”.
Eugénia Quaresma citou um projeto de refugiados em Lisboa, um restaurante de comida síria, “que está sempre cheio” e que “são uma mais valia para a sociedade porque houve um processo de integração para depois promover as pessoas”.
“O ano de 2019 foi o ano nacional da colaboração e, de norte a sul do país houve iniciativas que mostraram que é possível colaborar e é urgente passar esta mensagem, o trabalho em conjunto, dentro e fora da Igrejas e entre instituições”, remata.
A Igreja Católica em Portugal vai promover de 9 a 16 de agosto a Semana Nacional de Migrações, inspirada pela mensagem do Papa Francisco, ‘Forçados, como Jesus Cristo a Fugir’, procurando apresentar “testemunhos de vida” sobre a realidade das deslocações forçadas, por causa da pobreza ou da guerra.
Durante esta semana decorre ainda a Peregrinação Nacional do Migrante e Refugiado a Fátima, nos dias 12 e 13 de agosto.
A iniciativa vai estar no centro do programa ECCLESIA, na Antena 1 da rádio pública, este domingo, a partir das 06h00.
SN/OC
Ago 7, 2020 | Artigo, Informações, Migrantes, Missões, Notícias, Publicações
Iniciativa promovida pela Igreja Católica em Portugal decorre de 9 a 16 de agosto
Lisboa, 03 ago 2020 (Ecclesia) – A Igreja Católica em Portugal vai promover de 9 a 16 de agosto a Semana Nacional de Migrações, inspirada pela mensagem do Papa Francisco, ‘Forçados, como Jesus Cristo a Fugir’, procurando apresentar “testemunhos de vida” sobre a realidade das deslocações forçadas, por causa da pobreza ou da guerra.
“Vamos dinamizar de maneira diferente, e envolver as pessoas o mais possível nesta semana, as pessoas que trabalham com migrantes e refugiados mas não só; vivemos um tempo em que percebemos que estamos no mesmo barco e na mesma casa comum, mas com muitas desigualdades e percebemos que conseguimos fazer muito quando trabalhamos em conjunto”, refere à Agência ECCLESIA Eugénia Costa Quaresma, diretora da Obra Católica Portuguesa de Migrações (OCPM).
Perante as limitações impostas pela pandemia, a OCPM decidiu lançar um desafio aos “colaboradores e agentes pastorais ao serviço da Igreja” mas também a organismos da sociedade civil.
“Queremos conhecer o percurso migratório, tomar a iniciativa de contar a sua história de vida e fazer-nos chegar todas as iniciativas, seja em formato vídeo, seja por escrito, seja gravando um áudio ou até quem tem jeito para o desenho que faça uma banda desenhada”, explica Eugénia Quaresma.
Através do endereço ocpm@ecclesia.pt os contributos recolhidos vão dinamizar a semana nacional de Migrações e projetar o Dia Mundial do Migrante e Refugiado 2020 (27 de setembro).
A diretora da OCPM aponta ainda que, neste semana que o enfoque recai sobre as migrações forçadas, as suas causas, os deslocados internos e a cooperação internacional, a “sociedade precisa dos migrantes e refugiados”.
“É preciso perceber que a nossa sociedade precisa de migrantes e de refugiados, contar com o talento de todos e aprender a conviver e não embarcar nos estereótipos e no que vemos discorrer nas redes sociais, que é tão triste e revela ignorância, vamos por isso conhecer para compreender”, destaca.
O bispo de Santarém e presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e da Mobilidade Humana, D. José Traquina, vai presidir à peregrinação de agosto, dias 12 e 13 de agosto, que “é marcada sempre pelo calor da diáspora”, no Santuário de Fátima.
O 106.º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado tem como tema ‘Forçados, como Jesus Cristo, a fugir. Acolher, proteger, promover e integrar os deslocados internos’.
Francisco destaca na sua mensagem para a celebração que aqueles que fogem da sua terra, sem abandonar o próprio país, vivem, muitas vezes, um drama “invisível” que a crise mundial causada pela pandemia de Covid-19 “exacerbou”.
A OCPM, inspirada pela mensagem pontifícia para este ano, propõe uma dinamização em torno da conjugação de verbos, que se constituem em seis subtemas: “Conhecer para compreender; aproximar-se para servir; ouvir para se reconciliar; compartilhar e assim crescer; envolver para promover; colaborar para construir”.
A Secção ‘Migrantes e Refugiados’ do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral (Santa Sé) é responsável pela preparação desta celebração, antecedida por uma campanha de comunicação, atualmente em curso.
SN/OC
Jun 11, 2020 | Artigo, Documentos, Notícias, Recortes
O que é amar um país – Cardeal D. José Tolentino Mendonça (c/ vídeo)
Agradeço ao senhor Presidente o convite para presidir à Comissão das comemorações do dia 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Estas comemorações estavam para acontecer não só com outro formato, mas também noutro lugar, a Madeira. No poema inicial do seu livro intitulado Flash, o poeta Herberto Helder, ali nascido, recorda justamente «como pesa na água (…) a raiz de uma ilha». Gostaria de iniciar este discurso, que pensei como uma reflexão sobre as raízes, por saudar a raiz dessa ilha-arquipélago, também minha raiz, que desde há seis séculos se tornou uma das admiráveis entradas atlânticas de Portugal.
É uma bela tradição da nossa República esta de convidar um cidadão a tomar a palavra neste contexto solene para assim representar a comunidade de concidadãos que somos. É nessa condição, como mais um entre os dez milhões de portugueses, que hoje me dirijo às mulheres e aos homens do meu país, àquelas e àqueles que dia-a-dia o constroem, suscitam, amam e sonham, que dia-a-dia encarnam Portugal onde quer que Portugal seja: no território continental ou nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, no espaço físico nacional ou nas extensas redes da nossa diáspora.
Se interrogássemos cada um, provavelmente responderia que está apenas a cuidar da sua parte – a tratar do seu trabalho, da sua família; a cultivar as suas relações ou o seu território de vizinhança – mas é importante que se recorde que, cuidando das múltiplas partes, estamos juntos a edificar o todo. Cada português é uma expressão de Portugal e é chamado a sentir-se responsável por ele. Pois quando arquitetamos uma casa não podemos esquecer que, nesse momento, estamos também a construir a cidade. E quando pomos no mar a nossa embarcação não somos apenas responsáveis por ela, mas pelo inteiro oceano. Ou quando queremos interpretar a árvore não podemos esquecer que ela não viveria sem as raízes.
Camões e a arte do desconfinamento
foto Arlindo Homem/AE, Dia de Portugal 2020
Pensemos no contributo de Camões. Camões não nos deu só o poema. Se quisermos ser precisos, Camões deixou-nos em herança a poesia. Se, à distância destes quase quinhentos anos, continuamos a evocar coletivamente o seu nome, não é apenas porque nos ofereceu, em concreto, o mais extraordinário mapa mental do Portugal do seu tempo, mas também porque iniciou um inteiro povo nessa inultrapassável ciência de navegação interior que é a poesia. A poesia é um guia náutico perpétuo; é um tratado de marinhagem para a experiência oceânica que fazemos da vida; é uma cosmografia da alma. Isso explica, por exemplo, que Os Lusíadassejam, ao mesmo tempo, um livro que nos leva por mar até à India, mas que nos conduz por terra ainda mais longe: conduz-nos a nós próprios; conduz-nos, com uma lucidez veemente, a representações que nos definem como indivíduos e como nação; faz-nos aportar – e esse é o prodígio da grande literatura – àquela consciência última de nós mesmos, ao quinhão daquelas perguntas fundamentais de cujo confronto, um ser humano sobre a terra, não se pode isentar.
Se é verdade, como escreveu Wittgenstein, que «os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo», Camões desconfinou Portugal. A quem tivesse dúvidas sobre o papel central da cultura, das artes ou do pensamento na construção de um país bastaria recordar isso. Camões desconfinou Portugal no século XVI e continua a ser para a nossa época um preclaro mestre da arte do desconfinamento. Porque desconfinar não é simplesmente voltar a ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo plenamente; poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas, como um exercício deliberado e comprometido de cidadania. Desconfinar é sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito. É não conformar-se com os limites da linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio tempo. Numa estação de tetos baixos, Camões é uma inspiração para ousar sonhos grandes. E isso é tanto mais decisivo numa época que não apenas nos confronta com múltiplas mudanças, mas sobretudo nos coloca no interior turbulento de uma mudança de época.
Que a crise nos encontre unidos
Gostaria de recordar aqui uma passagem do Canto Sexto d’Os Lusíadas, que celebra a chegada da expedição portuguesa à India. Os marinheiros, dependurados na gávea, avistam finalmente «terra alta pela proa» e passam notícia ao piloto que, por sua vez, a anuncia vibrante a Vasco da Gama. O objetivo da missão está assim cumprido. Mas o Canto Sexto tem uma exigente composição em antítese, à qual não podemos não prestar atenção. É que à visão do sonho concretizado não se chega sem atravessar uma dura experiência de crise, provocada por uma tempestade marítima que Camões sabiamente se empenha em descrever, com impressiva força plástica. Digo sabiamente, porque não há viagem sem tempestades. Não há demandas que não enfrentem a sua própria complexificação. Não há itinerário histórico sem crises. Isso vem-nos dito n’Os Lusíadas de Camões, mas também nas Metamorfoses de Ovídio, na Eneida de Virgílio, na Odisseia de Homero ou nos Evangelhos cristãos.
No itinerário de um país, cada geração é chamada a viver tempos bons e maus, épocas de fortuna e infelizmente também de infortúnio, horas de calmaria e travessias borrascosas. A história não é um continuum, mas é feita de maturações, deslocações, ruturas e recomeços. O importante a salvaguardar é que, como comunidade, nos encontremos unidos em torno à atualização dos valores humanos essenciais e capazes de lutar por eles.
Mas à observação realística que Camões faz da tempestade, gostaria de ir buscar um detalhe, na verdade uma palavra, para a reflexão que proponho: a palavra «raízes». Na estância 79, falando dos efeitos devastadores do vento, o poeta diz: «Quantas árvores velhas arrancaram/ Do vento bravo as fúrias indignadas/ As forçosas raízes não cuidaram/Que nunca para o Céu fossem viradas». A leitura da imagem em jogo é imediata: as velhas árvores reviradas ao contrário, arrancadas com violência ao solo, expõem dramaticamente, a céu aberto, as próprias raízes. A tempestade descrita por Camões recorda-nos, assim, a vulnerabilidade, com a qual temos sempre de fazer conta. As raízes, que julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os efeitos da turbulência da máquina do mundo. Não há super-países, como não há super-homens. Todos somos chamados a perseverar com realismo e diligência nas nossas forças e a tratar com sabedoria das nossas feridas, pois essa é a condição de tudo o que está sobre este mundo.
O que é amar um país
Foto Arlindo Homem/AE, Dia de Portugal 2020
O Dia de Portugal, e este Dia de Portugal de 2020 em concreto, oferece-nos a oportunidade de nos perguntarmos o que significa amar um país. A pensadora europeia Simone Weil, num instigante ensaio destinado a inspirar o renascimento da Europa sob os escombros da Segunda Grande Guerra, de cujo desfecho estamos agora a celebrar o 75º aniversário, escreveu o seguinte: um país pode ser amado por duas razões, e estas constituem, na verdade, dois amores distintos. Podemos amar um país idealmente, emoldurando-o para que permaneça fixo numa imagem de glória, e desejando que esta não se modifique jamais. Ou podemos amar um país como algo que, precisamente por estar colocado dentro da história, sujeito aos seus solavancos, está exposto a tantos riscos. São dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela fragilidade. Mas, explica Simone Weil, quando é o reconhecimento da fragilidade a inflamar o nosso amor, a chama deste é muito mais pura.
O amor a um país, ao nosso país, pede-nos que coloquemos em prática a compaixão – no seu sentido mais nobre – e que essa seja vivida como exercício efetivo da fraternidade. Compaixão e fraternidade não são flores ocasionais. Compaixão e fraternidade são permanentes e necessárias raízes de que nos orgulhamos, não só em relação à história passada de Portugal, mas também àquela hodierna, que o nosso presente escreve. E é nesse chão que precisamos, como comunidade nacional, de fincar ainda novas raízes.
Nestes últimos meses abateu-se sobre nós uma imprevista tempestade global que condicionou radicalmente as nossas vidas e cujas consequências estamos ainda longe de mensurar. A pandemia que principiou como uma crise sanitária tornou-se uma crise poliédrica, de amplo espetro, atingindo todos os domínios da nossa vida comum. Sabendo que não regressaremos ao ponto em que estávamos quando esta tempestade rebentou, é importante, porém, que, como sociedade, saibamos para onde queremos ir. No Canto Sexto d’Os Lusíadas a tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a oportunidade para redescobrir o que significa estarmos no mesmo barco.
Reabilitar o pacto comunitário
O que significa estar no mesmo barco? Permitam-me pegar numa parábola. Circula há anos, atribuída à antropóloga Margaret Mead, a seguinte história. Um estudante ter-lhe-ia perguntado qual seria para ela o primeiro sinal de civilização. E a expectativa geral é que nomeasse, por exemplo, os primeiríssimos instrumentos de caça, as pedras de amolar ou os ancestrais recipientes de barro. Mas a antropóloga surpreendeu a todos, identificando como primeiro vestígio de civilização um fémur quebrado e cicatrizado. No reino animal, um ser ferido está automaticamente condenado à morte, pois fica fatalmente desprotegido face aos perigos e deixa de se poder alimentar a si próprio. Que um fémur humano se tenha quebrado e restabelecido documenta a emergência de um momento completamente novo: quer dizer que uma pessoa não foi deixada para trás, sozinha; que alguém a acompanhou na sua fragilidade, dedicou-se a ela, oferecendo-lhe o cuidado necessário e garantindo a sua segurança, até que recuperasse. A raiz da civilização é, por isso, a comunidade. É na comunidade que a nossa história começa. Quando do eu fomos capazes de passar ao nós e de dar a este uma determinada configuração histórica, espiritual e ética.
É interessante escutar o que diz a etimologia latina da palavra comunidade (communitas). Associando dois termos, cum e munus, ela explica que os membros de uma comunidade – e também de uma comunidade nacional – não estão unidos por uma raiz ocasional qualquer. Estão ligados sim por um múnus, isto é, por um comum dever, por uma tarefa partilhada. Que tarefa é essa? Qual é a primeira tarefa de uma comunidade? Cuidar da vida. Não há missão mais grandiosa, mais humilde, mais criativa ou mais atual.
Celebrar o Dia de Portugal significa, portanto, reabilitar o pacto comunitário que é a nossa raiz. Sentir que fazemos parte uns dos outros, empenharmo-nos na qualificação fraterna da vida comum, ultrapassando a cultura da indiferença e do descarte. Uma comunidade desvitaliza-se quando perde a dimensão humana, quando deixa de colocar a pessoa humana no centro, quando não se empenha em tornar concreta a justiça social, quando desiste de corrigir as drásticas assimetrias que nos desirmanam, quando, com os olhos postos naqueles que se podem posicionar como primeiros, se esquece daqueles que são os últimos. Não podemos esquecer a multidão dos nossos concidadãos para quem o Covid19 ficará como sinónimo de desemprego, de diminuição de condições de vida, de empobrecimento radical e mesmo de fome. Esta tem de ser uma hora de solidariedade. No contexto do surto pandémico, foi, por exemplo, um sinal humanitário importante a regularização dos imigrantes com pedidos de autorização de residência, pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. O desafio da integração é, porém, como sabemos, imenso, porque se trata de ajudar a construir raízes. E essas não se improvisam: são lentas, requerem tempo, políticas apropriadas e uma participação do conjunto da sociedade. Lembro-me de um diálogo do filme do cineasta Pedro Costa, «Vitalina Varela», onde se diz a alguém que chega ao nosso país: «chegaste atrasada, aqui em Portugal não há nada para ti». Sem compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e aliena-se a possibilidade de lançar raízes.
Fortalecer o pacto intergeracional
Foto Arlindo Homem/AE, Dia de Portugal 2020
Reabilitar o pacto comunitário implica robustecer, entre nós, o pacto intergeracional. O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual, como se não fossemos a cada momento um todo inseparável: velhos e jovens, reformados e jovens à procura do primeiro emprego, avós e netos, crianças e adultos no auge do seu percurso laboral. Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações. É um erro pensar ou representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros.
A tempestade provocada pelo Covid19 obriga-nos como comunidade, a refletir sobre a situação dos idosos em Portugal e nesta Europa da qual somos parte. Por um lado, eles têm sido as principais vítimas da pandemia, e precisamos chorar essas perdas, dando a essas lágrimas uma dignidade e um tempo que porventura ainda não nos concedemos, pois o luto de uma geração não é uma questão privada. Por outro, temos de rejeitar firmemente a tese de que uma esperança de vida mais breve determine uma diminuição do seu valor. A vida é um valor sem variações. Uma raiz de futuro em Portugal será, pelo contrário, aprofundar a contribuição dos seus idosos, ajudá-los a viver e a assumir-se como mediadores de vida para as novas gerações. Quando tomei posse como arquivista e bibliotecário da Santa Sé, uma das referências que quis evocar nesse momento foi a da minha avó materna, uma mulher analfabeta, mas que foi para mim a primeira biblioteca. Quando era criança, pensava que as histórias que ela contava, ou as cantilenas com que entretinha os netos, eram coisas de circunstância, inventadas por ela. Depois descobri que faziam parte do romanceiro oral da tradição portuguesa. E que afinal aquela avó analfabeta estava, sem que nós soubéssemos, e provavelmente sem que ela própria o soubesse, a mediar o nosso primeiro encontro com os tesouros da nossa cultura.
Robustecer o pacto intergeracional é também olhar seriamente para uma das nossas gerações mais vulneráveis, que é a dos jovens adultos, abaixo dos 35 anos; geração que, praticamente numa década, vê abater-se sobre as suas aspirações, uma segunda crise económica grave. Jovens adultos, muitos deles com uma alta qualificação escolar, remetidos para uma experiência interminável de trabalho precário ou de atividades informais que os obrigam sucessivamente a adiar os legítimos sonhos de autonomia pessoal, de lançar raízes familiares, de ter filhos e de se realizarem.
Implementar um novo pacto ambiental
A pandemia veio, por fim, expor a urgência de um novo pacto ambiental. Hoje é impossível não ver a dimensão do problema ecológico e climático, que têm uma clara raiz sistémica. Não podemos continuar a chamar progresso àquilo que para as frágeis condições do planeta, ou para a existência dos outros seres vivos, tem sido uma evidente regressão. Num dos textos centrais deste século XXI, a Encíclica Laudato Sii’, o Papa Francisco exorta a uma «ecologia integral», onde o presente e o futuro da nossa humanidade se pense a par do presente e do futuro da grande casa comum. Está tudo conectado. Precisamos de construir uma ecologia do mundo, onde em vez de senhores despóticos apareçamos como cuidadores sensatos, praticando uma ética da criação, que tenha expressão jurídica efetiva nos tratados transnacionais, mas também nos estilos de vida, nas escolhas e nas expressões mais domésticas do nosso quotidiano.
Uma viagem que fazemos juntos
Camões n’Os Lusíadas não apenas documentou um país em viagem, mas foi mais longe: representou o próprio país como viagem. Portugal é uma viagem que fazemos juntos há quase nove séculos. E o maior tesouro que esta nos tem dado é a possibilidade de ser-em-comum, esta tarefa apaixonante e sempre inacabada de plasmar uma comunidade aberta e justa, de mulheres e homens livres, onde todos são necessários, onde todos se sentem – e efetivamente são – corresponsáveis pelo incessante trânsito que liga a multiplicidade das raízes à composição ampla e esperançosa do futuro. Portugal é e será, por isso, uma viagem que fazemos juntos. E uma grande viagem é como um grande amor. Uma viagem assim – explica Maria Gabriela Llansol, uma das vozes mais límpidas da nossa contemporaneidade -, não se esgota, nem cancela na fugaz temporalidade da história, mas constitui uma espécie de «rasto do fulgor» que exprime a ardente natureza do sentido que interrogamos.
Mosteiro dos Jerónimos, 10 de junho de 2020
Cardeal D. José Tolentino Mendonça