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Eu, um muçulmano, vaticanista por um dia

Eu, um muçulmano, vaticanista por um dia

Eu, um muçulmano, vaticanista por um dia

Em Marrocos com o Papa: “uma experiência inesquecível” (de Brahim Maarad, editor da AGI), 2019/04/02

A chuva é uma bênção no Islão. Tanto é assim que as invocações pronunciadas durante as chuvas são mais prováveis de serem atendidas por Alá. Em Marrocosnunca chove o suficiente. No entanto, o Papa Francisco chegou, no sábado, aRabat debaixo de um dilúvio. O primeiro do ano e quem sabe quando chegará osegundo. Foi um dos muitos sinais de um dia abençoado. Um momento de encontro -como disse Francisco – “entre irmãos e irmãs”.

O meu emocionante encontro com o Papa aconteceu a bordo do avião. Com a agencia AGI tive o privilégio de acompanhá-lo – juntamente com cerca de setenta colegas de todo o mundo – nesta viagem apostólica de “Servo da Esperança”. Fi-lo como jornalista, mas também como testemunha daquela ponte de convivência tão desejada e procurada pelo Papa.

Nascido em Marrocos e criado na Itália, sou um muçulmano que vive num país predominantemente católico e trabalho a dois passos do Vaticano. Durante trinta horas foi-me confiado o encargo e a honra de ser “o vaticanista”. E o papa, depois de ouvir a minha história, voltou-se para mim com a mais humilde expressão, tão querida para ele: “Reza por mim”. Orar por alguém é a maior forma de generosidade, também e acima de tudo, quando o outro pertence a uma confissão diferente. Não pude deixar de pedir-lhe que fizesse o mesmo por mim.

O marroquino sempre foi um povo acolhedor, uma terra que é uma ponte natural entre a África e a Europa. E ele mostrou isso no sábado, reservando para o grande convidado o calor que ele merece: o próprio Rei Mohammed VI, soberano do país e “Comandante dos fiéis”, espera por ele junto à escada do avião. Uma presença que queria sublinhar o significado histórico da visita. O último papa a pisar no solo do país foi Woytila, em 1985. Oitocentos anos antes, com as mesmas intenções de conhecimento mútuo, São Francisco de Assis e
o sultão al-Malik al-Kamil encontraram-se. Demonstração profética – disse Francisco – de que “a coragem do encontro e da mão estendida é um caminho de paz e harmonia para a humanidade, onde o extremismo e o ódio são fatores de divisão e destruição”.

O desejo de estender a mão trouxe para a rua milhares de marroquinos que queriam ser testemunhas diretas desse abraço dos valores da humanidade. Ao longo da estrada percorrida pelo papa e pelo rei, os cidadãos invocaram uma longa vida para os dois. E acrescento eternidade à sua mensagem de esperança. A composição diversa da sociedade marroquina estava representada naquela multidão: ricos e pobres, migrantes africanos e turistas cristãos. Naquele dia todos eles eram apenas irmãos e irmãs, seguindo o exemplo oferecido pelo papa e pelo soberano.

No voo de volta Francisco – sempre otimista – admitiu que “ainda haverá tantas dificuldades, porque em toda religião existe um grupo fundamentalista que não quer avançar”. No entanto, durante a viagem a Marrocos – depois daquela ao Dubai – a esperança foi semeada e ” deu flores promissoras que mais tarde se tornarão frutos”.

Foram dois dias muito intensos: o Papa quis ver como está viva a pequena comunidade de cristãos presentes no país. Há 30 mil numa população de 36 milhões. “O problema não é ser pequeno, mas insignificante”, disse Francisco quando se encontrou com o clero na catedral de Rabat. E ele recomendou – aos cristãos, mas também aos muçulmanos – que “o proselitismo leva a um caminho cego. A Igreja cresce por atração, por testemunho e não por proselitismo “.

O melhor testemunho permanece para mim a missa celebrada pelo papa no complexo desportivo do Príncipe Moulay Abdellah. Mais de 10 mil fiéis de 60 países participaram. Entre eles também muitos muçulmanos. Mas a mensagem mais importante foi a do lado de fora, fora do enquadramento das cameras em direto: centenas de agentes para proteger a missa cristã, num dos principais países muçulmanos do mundo.

Eu gosto de pensar que essa proteção – duas semanas após o massacre nas mesquitas da Nova Zelândia – pode ser dedicada a todo cristão que queira orar em um país de muçulmanos. E para todo muçulmano que queira orar numa terra onde seja minoria. Para que, citando novamente o Papa, possa “crescer na cultura da misericórdia, na qual ninguém olha para o outro com indiferença, nem desvia o olhar quando vê o seu sofrimento”, deixando de lado “o ódio e a vingança que servem apenas para matar a alma “.


Brahim Maarad para o blog Straordinario quotidiano, em Agi.it . Traduzido com a devida vénia.

 

SUMO CONSTRUTOR DE PONTES

SUMO CONSTRUTOR DE PONTES

Quanto mais as margens estão separadas, maior tem que ser a ponte para as unir. Maior também precisa de ser a coragem e a arte para construir tal ponte.

As observações que vou fazer não pertencem ao campo da engenharia civil, mas sim à arquitetura humana, inspirada pela fé. Certamente que homens e mulheres não se medem aos palmos, como nos lembra o ditado popular. Somos grandes na medida em que conseguimos unir margens distantes; aproximar pessoas e grupos diferentes na sua história e cultura, na diversidade de credos e estilos de vida.

Construir pontes de acolhimento e compreensão, de diálogo e encontro é uma tarefa de todo o ser humano. A lei da selva vai em sentido oposto: para uma fera ser grande precisa de vencer, de aniquilar a concorrência. A família é a escola primordial da arquitetura de pontes de fraternidade. Mais velhos e mais novos, mulheres e homens, de feitios e aptidões diferentes, vamos aprendendo a conviver amistosamente, completando-nos na aceitação da diversidade. É o puzzle da fraternidade, em que todos somos precisos e importantes.

O Papa da Igreja Católica costuma apelidar-se de “Sumo Pontífice”. Poderá parecer um título solene e pomposo. Mas não: descreve uma missão de serviço. A palavra “pontífice”, indo à sua raiz latina, significa construtor de pontes. Neste caso significa construir pontes entre Deus e a humanidade, entre os fiéis da Igreja de Cristo e com todas as pessoas de boa vontade. Todos temos a missão de sermos “pontífices”, construtores de pontes de encontro e fraternidade, evitando divisionismos, afastamentos, separações. Aliás Cristo, no seu discurso da última ceia, como testamento pediu aos seus seguidores: “Que todos sejam um”. E o Papa é quem tem a máxima responsabilidade de uma Igreja apostada em construir pontes de unidade. É o Sumo Pontífice.

O Papa Francisco tem sentido a urgência desta missão de construir pontes especialmente com as margens mais distantes: com as “periferias geográficas e existenciais”, com os que não vivem segundo as normas da Igreja Católica, com os crentes de outras religiões, com o mundo dos agnósticos e ateus, sublinhando que ninguém deve ser excluído da solicitude pastoral da Igreja, que o cristão deve ter coração e braços abertos para acolher a todos.

Esta atitude fundamental tem-se verificado nos critérios com que organiza a agenda das suas viagens apostólicas, dando prioridade a países em que os católicos são uma minoria, onde não pode esperar banhos de multidão e vai encontrar “margens” distantes. Por isso, mais importante é construir “pontes”. Vou agora apenas referir-me à sua última visita que foi aos Emirados Árabes Unidos, de 3 a 5 de fevereiro.

O Papa Francisco sublinhou que esta viagem pertence às “surpresas de Deus”, imprevistos que têm o dedo divino. Oito séculos antes, em 1219, outro gesto percursor deste: Francisco de Assis ousou ir ao Egito encontrar-se com o Sultão Malik al-Kamil, em conversações de paz e bem. Como referiu o Santo Padre, escreveu-se uma original e importante “nova página na história do diálogo entre o cristianismo e o islamismo”. Contrariando a escalada de fundamentalismos e terrorismos, o Papa corajosamente visitou quem poderia ser considerado estranho, senão inimigo. Assim, afirmou: “Numa época em que a tentação de ver um choque entre civilizações cristãs e islâmicas é forte, queríamos dar um sinal mais claro e decisivo que, em vez disso, é possível encontrar, é possível respeitar e dialogar”. O beijo entre o Papa e o Grande Imã de Al-Azhar al-Sharif é muito mais que uma cortesia. É uma audaz profecia de que é perfeitamente possível viver como irmãos na diferença de tradições culturais e religiosas e de que os desentendimentos e confrontos violentos devem ser sepultados no passado. É dado um passo de gigante com o documento assinado por ambos sobre “a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum”.

Deste documento, rico de humanidade e de graça divina, cito apenas esta breve passagem: “Em nome de Deus e de tudo isto, Al-Azhar al-Sharif – com os muçulmanos do Oriente e do Ocidente – juntamente com a Igreja Católica – com os católicos do Oriente e do Ocidente – declaramos adotar a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério. Nós – crentes em Deus, no encontro final com Ele e no seu Julgamento –, a partir da nossa responsabilidade religiosa e moral e através deste Documento, rogamos a nós mesmos e aos líderes do mundo inteiro, aos artífices da política internacional e da economia mundial, para se comprometerem seriamente na difusão da tolerância, da convivência e da paz; para intervirem, o mais breve possível, a fim de se impedir o derramamento de sangue inocente e acabar com as guerras, os conflitos, a degradação ambiental e o declínio cultural e moral que o mundo vive atualmente”.

Celebramos este exemplo magnífico de ponte construída entre margens tão distantes. Mesmo que o abismo da desconfiança e das feridas históricas seja grande, é sempre possível construir uma ponte de aproximação e diálogo. O gesto do Sumo Pontífice Francisco reclama que o imitemos na nossa família, comunidade e grupo de trabalho e convivência.

Manuel Morujão, sj

Rede Mundial de oração

A Terra em risco, o Mundo em procura

A Terra em risco, o Mundo em procura

O papel das religiões na Casa Comum e o caso Genesis Butler

  1. LAUDATO SÍ – UMA ENCÍCLICA INSPIRADORA?

Quando a jovem Genesis Butler cita a encíclica Laudato Sí e pede ao Papa que faça um jejum mais rigoroso na Quaresma, não constrói apenas – ela e todo o movimento que a acompanha nesta demanda – uma hábil chamada de atenção para o propósito que a move, mas reconhece que Francisco é já um protagonista essencial no debate sobre as questões ambientais.

Laudato Sí (LS) constituirá um dos mais ruidosos gritos políticos de um Papa na história recente, entendendo-se aqui a política no sentido mais nobre, que todos responsabiliza no exercício de uma cidadania pelo bem comum. É o primeiro documento de um Papa integralmente dedicado aos problemas ambientais e à ecologia.

Não se trata de um texto em circunstância aguda, nem apenas da resposta a uma crise eruptiva, mas do traçado para uma nova era. Como escreve Francisco, “apontar para outro estilo de vida”. E é neste aspeto radical da reflexão do Papa que Genesis encontra abertura para o ousado convite. Ela representa, afinal, um movimento que pretende a radicalidade de uma mudança de comportamento no consumo alimentar.

Com as alterações climáticas como eixo da reflexão, Francisco exalta na encíclica Laudato Sí a consciência humana para o respeito pelo meio. Sem o compromisso pela Casa Comum e pela defesa da Criação – forma judaico-cristã de interpretar natureza – não será nunca possível a justiça e a paz.

Na essência, o Papa salienta a ideia de uma dívida ecológica – entre os hemisférios norte e sul – e de uma ecologia integral. Não fica apenas por frases abertas com slogans mais ou menos assertivos. Propõe gestos concretos, individuais, como a reciclagem e poupança de água, mas vai muito mais além da responsabilidade pessoal. Recorrendo aos últimos estudos científicos sobre o clima, o chefe da Igreja católica chega a ir a pormenores do drama ecológico.

Se sublinha a ameaça sobre “organismos marinhos que não temos em consideração, como certas formas de plâncton que constituem um componente muito importante da cadeia alimentar marinha e de que dependem, em última instância, espécies que se utilizam para a alimentação humana” (40, LS), condena também a tentativa de “legitimar o modelo distributivo actual, no qual uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos de tal consumo”, bem como a corrupção, admitindo “o desenvolvimento de controles mais eficientes e uma luta mais sincera contra a corrupção, que “cresceu a sensibilidade ecológica das populações”, mas advertindo que isto “é ainda insuficiente para mudar os hábitos nocivos de consumo, que não parecem diminuir, antes expandem-se e desenvolvem-se” (55, LS).

Além disso, acrescenta, “sabemos que se desperdiça aproximadamente um terço dos alimentos produzidos, e a comida que se desperdiça é como se fosse roubada da mesa do pobre” (50, LS). O Papa pede “atenção ao desequilíbrio na distribuição da população pelo território, tanto a nível nacional como a nível mundial, porque o aumento do consumo levaria a situações regionais complexas pelas combinações de problemas ligados à poluição ambiental, ao transporte, ao tratamento de resíduos, à perda de recursos, à qualidade de vida” (50, LS).

A preocupação com o estado da Casa Comum foi inscrita nos primeiros discursos do papa argentino. Acompanha o pontificado desde o início. Juntando-se a outras lideranças religiosas igualmente interventivas neste debate, como o Patriarca Ortodoxo de Constantinopla, Francisco tomou partido.

Não se estranhe que a encíclica Laudato Sí tenha sido encarada como uma declaração de guerra aos interesses instalados em volta da exploração de recursos naturais, assentes num modelo de vida e de consumo que leva ao abismo. Foi depois deste texto – posterior à exortação onde o Papa diz que “esta economia mata” (exortação apostólica Evangelli Gaudium, 2013) – e da intransigente defesa dos migrantes, com duras críticas a Trump, que o Papa se viu alvo de uma agressiva campanha nos Estados Unidos, acusado de ser um perigoso extremista e comunista.

“Os recursos da terra estão a ser depredados também por causa de formas imediatistas de entender a economia e a actividade comercial e produtiva”, denuncia o chefe da Igreja católica, “a perda de florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente importantes não só para a alimentação mas também para a cura de doenças e vários serviços” (32, LS).

É nesta encíclica que o Papa lança um novo debate sobre a política e o exercício político. “O mundo do consumo exacerbado é, simultaneamente, o mundo que maltrata a vida em todas as suas formas”, constata, afirmando a necessidade de “voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a pena ser bons e honestos”.

Se a “degradação moral” e a falta de ética destroem “o fundamento da vida social”, colocando “uns contra os outros na defesa dos próprios interesses”, despertando “novas formas de violência e crueldade” que impedem o desenvolvimento de “uma verdadeira cultura do cuidado do meio ambiente“ (229, LS), o Papa propõe o conceito de “amor civil e político”.

É o princípio da corresponsabilidade, enquadrado na chamada Doutrina Social da Igreja: “O amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as acções que procuram construir um mundo melhor” (231, LS). Este “amor à sociedade e o compromisso pelo bem comum” implicará as relações entre os indivíduos e as “ macro relações como relacionamentos sociais, económicos, políticos” (encíclica Caritas in Veritate, Bento XVI, 2009).

A ecologia integral preconizada por Francisco, de Roma, sintoniza-se com o hino de Francisco de Assis. A preocupação com a natureza e a paz é inseparável da justiça, do combate à pobreza, de um compromisso social que contrarie as desigualdades.

  1. “TEMOS DE AGIR” – UM COMPROMISSO PORTUGUÊS.

O apelo de Genesis Butler vai além do circunstancial impacto da campanha que protagoniza, pois não se dirige apenas ao Papa. É um apelo ao compromisso, lembrando avanços e recuos dos pactos e metas definidas pelos consórcios e organizações intergovernamentais.

Esta tarefa apresenta-se com tanta urgência quanta a evidência de um quotidiano que já nos habituou à imprevisibilidade dos ritmos e vontades do clima.

Como sublinha o Papa Francisco, cada indivíduo, cada comunidade, cada núcleo de influência, tem uma responsabilidade própria. É o caso das estruturas religiosas, a começar nas lideranças.

Com reduzido impacto mediático, quase passou despercebido o momento histórico vivido em Junho de 2017. Dias antes da tragédia de Pedrógão, representantes de todas as confissões religiosas em Portugal assinaram em Vila Nova de Gaia, durante a primeira versão do evento Gaia – Todo Um Mundo, o Compromisso pela Casa Comum e pela Ética do Cuidado. O texto foi trabalhado por investigadores da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, depois de elaborada reflexão e diálogo.

Os subscritores reconhecem que “existe uma ligação fundamental entre o que fazemos e o que isso faz ao Planeta, ou seja, à «casa que é comum» que, longe de ser uma qualquer propriedade ou recurso de quem quer que seja, é acima de tudo a condição de possibilidade de existirmos, vivermos e aprendermos a cuidar”. Concordando que há uma “interdependência fundamental da Vida”, vislumbram a necessidade de “uma revolução cultural que transforme o homem (…) num sujeito ecológico que entende e experiência o ethos como morada global”. Além do estudo “de uma rede natural de vida e da revisão do lugar do homem na Natureza, precisamos de (re)encontrar o lugar da Natureza no humano”, lê-se, o ser humano é “em relação e interdependência, ser no mundo e com o mundo”.

Porque, embora de diferentes formas, as diferentes tradições religiosas abordam “as mesmas preocupações perante alterações ambientais radicadas em práticas que contrariam os equilíbrios dos ecossistemas”, os representantes das confissões religiosas radicadas em Portugal assumem a vontade de elevar a voz “para que todos e cada um, pessoal ou institucionalmente, cooperem pela paz radicada na Compaixão por toda a vida planetária, de modo a que seja estabelecido um programa ecológico eficiente, pleno de impulso fraterno e sustentabilidade verdadeiramente integral.”

Este Compromisso foi subscrito também por autarcas e investigadores, numa cerimónia precedida de um debate sobre a relação entre o pensamento religioso e a ecologia, cujo tema inspirou o título deste texto – A Terra em risco, o Mundo em Procura.

Noutra sessão, o Compromisso pela Casa Comum e pela Ética do Cuidado voltou a ser subscrito na Amadora por representantes locais das confissões religiosas e da autarquia. Está em dinâmica crescente, procurando envolver lideranças, na expectativa que tome formas práticas nas comunidades religiosas, com consequências no comportamento individual.

Na sequência desta iniciativa, a área de Ciência das Religiões da ULHT anunciou já criação de um selo ambiental a atribuir às estruturas religiosas.

Sendo abrangente, este Compromisso não especifica a questão alimentar, mas esta é subjacente quando os subscritores se comprometem “a tudo fazer para inverter práticas depredatórias, promovendo uma compreensão ecológica associada a valores éticos”. O resto cabe à mediação e especificidade do impacto da religião na vida concreta dos crentes.

  1. “COZINHAR É UM MODO DE AMAR OS OUTROS” – AS RELIGIÕES E A ALIMENTAÇÃO

 

A questão ambiental é um pilar do fenómeno religioso, mas não é uma gaveta isolada no armário da experiência religiosa. O mesmo acontece com o ato de comer. 

Se perscrutarmos a ancestralidade do fenómeno religioso, verificaremos sem dificuldade que os interditos alimentares definidos pelas religiões derivam, em grande medida, de uma relação de dependência com o meio, entre a vontade humana, o concreto da sobrevivência e a procura de sentido para o abstrato.

A visão antropos compreende-se na grande angular do meio envolvente e de uma alteridade orientadora, organizadora. É o homem no meio, que em contexto bíblico assume o papel de cuidador delegado e responsável, gestor em mediação ética.

Até em práticas religiosas animistas, a divinização de animais reflete paradoxalmente esta matriz de compreensão do meio. Satisfazendo os deuses, o sacrifício dá altivez à espécie.

As narrativas do sagrado a Oriente definem também o papel humano nesta cadeia. No percurso para a moksha ou para o nirvana, a ética da interdependência é determinante. A libertação faz-se no respeito pelo meio, porque tudo está ligado e transporta o sopro da existência. Neste contexto, aniquilar um ser vivo é um revés.

Um debate realizado em Novembro de 2018 na Mesquita Central de Lisboa realçou o papel das religiões na promoção de uma alimentação saudável, valorizando o acto de comer e os sistemas tradicionais de produção.

Paulo Mendes Pinto, coordenador da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, lembrou que as religiões, e sobretudo os monoteísmos, “em que a refeição é central na sociabilização e na prática religiosa, valorizam o acto de comer”. As narrativas religiosas monoteístas, acrescentou, falam num “mandato” dado ao homem para distribuir com justiça e “cuidar da Terra participando no acto da Criação”. O desafio religioso é o da “igualdade”, concluiu, “a alimentação é uma responsabilidade ética”, sendo por isso assustador voltar a ver imagens de crianças a morrer à fome quando se sabe como superar essa carência.

“Cozinhar é um modo de amar os outros”. Estas palavras de Mia Couto serviram de ingrediente para a conversa servida na mesquita com uma pergunta na ementa: “Como alimentar a Humanidade de forma sustentável?”

Francisco Sarmento, o representante da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) em Portugal, abriu o apetite da conversa citando o poeta moçambicano, biólogo e escritor, para realçar a importância de se encarar a alimentação com responsabilidade ética: “Cozinhar é o mais privado e arriscado acto, no alimento se coloca ternura e ódio, na panela se verte tempero ou veneno. Cozinhar não é um serviço, cozinhar é um modo de amar os outros.”

A partir das palavras de Mia Couto, Sarmento salientou que “alimentação e sustentabilidade têm de estar juntas”, pois “não se pode alimentar a Humanidade de forma insustentável”.

Especialista em gestão alimentar e políticas agrícolas, o representante da FAO alertou para o novo problema da produção excessiva de calorias, em vez de nutrientes, que faz aumentar a incidência de doenças como a obesidade ou a diabetes, desencadeando indirectamente, entre outros dramas, a exclusão social e o absentismo laboral. A situação é mais grave nos países em vias de desenvolvimento “que não têm sistemas de saúde capazes de responder”, afirmou. Francisco Sarmento alertou ainda para a necessidade de “mudarem os padrões de consumo alimentar, com a evolução para dietas” mais saudáveis e ecologicamente sustentáveis e admitiu que esta discussão pode ser frustrante: as soluções são conhecidas mas parece faltar vontade política para contrariar uma “alimentação cada vez mais industrializada, que afecta os grupos mais desfavorecidos”.

As estruturas sociais, incluindo as religiosas, “têm um papel pedagógico na alimentação saudável, valorizando o acto de comer e os sistemas tradicionais de produção”, acrescentou Francisco Sarmento, insistindo no reforço “dos produtores familiares, ligando o meio-ambiente à agricultura, reconstruindo sistemas localizados, de proximidade, na produção e na confecção”, para atenuar o uso químico de conservantes.

  1. “ABSTENHA-SE DE PRODUTOS DE ORIGEM ANIMAL DURANTE A QUARESMA” – O APELO OUSADO.

O convite ao Papa tem um contexto. Na tradição cristã, a Quaresma é um tempo de jejum e abstinência, abrindo espaço à oração e à penitência dos fiéis, correspondente ao período de quarenta dias de preparação para a Páscoa. Lembra o número quarenta, simbólico em muitas narrativas do Antigo e do Novo Testamento, como os quarenta dias que Jesus passou no deserto ou os 40 anos da travessia dos judeus no deserto.

Mas o que pede Genesis Butler ao Papa? A tradição católica revela comportamentos exacerbados no folclore das devoções. Mas, entre a teatralização da penitência como catequese e o exercício da chamada «mortificação corporal» – cuja sustentação teológica é controversa – sobrevive um princípio orientador na vivência deste tempo.

Na indicação do papa Leão Magno, há que “mortificar um pouco o homem exterior, para que o interior seja restaurado, perdendo um pouco do excesso corpóreo, o espírito reforça-se”.

O jejum da Quaresma não consiste na contenção dos impulsos da libido ou na privação de alimentos para fazer dieta, embora esta acabe por resultar numa ação de restabelecimento. É sobretudo um convite à experiência espiritual. As buscas do e pelo espírito compreendem o indivíduo como um todo – corpo e alma.

Na disciplina tradicional da Igreja, jejum e abstinência fazem-se da Quarta-feira de Cinzas à Páscoa, limitando a alimentação diária a uma refeição ou comendo de forma ligeira e simples, evitando o esbanjamento. Os fiéis podem ainda privar-se de uma certa quantidade e qualidade de alimentos ou bebidas. A mais praticada é a abstenção da carne, pelo menos nas sextas-feiras da Quaresma.

A missiva de Genesis Butler usa a figura do Papa para dar um impulso mediático à opção vegana como proposta de vida, contribuindo para contrariar a “destruição e devastação global” provocada por um excessivo consumo de carne. Verificando-se a generosidade e honestidade da campanha, o Papa não se incomodará, pelo contrário. Mas convém reforçar que não basta deixar de comer carne para resolver o problema e fazer a desejada revolução nos hábitos alimentares. Não comer carne na Quaresma será uma opção tranquila para o Papa e não será difícil para qualquer outro católico, nem para qualquer outro cidadão, crente ou não crente. E, na verdade, não é ao Papa que este convite se dirige…

Por Joaquim Franco, jornalista da SIC e investigador em Ciência das Religiões

https://sicnoticias.pt/especiais/a-menina-ativista-que-desafia-o-papa/2019-02-06-A-Terra-em-risco-o-Mundo-em-procura

 

 

Rezar a Palavra  – Lc 5, 1-11

Rezar a Palavra – Lc 5, 1-11

 

UAE POPE FRANCIS HUMAN FRATERNITY MEETING

 

Simão, Faz-te ao Largo!

Senhor, que grande sinal nos destes nos Emirados Árabes Unidos ao suscitar no coração do Papa Francisco e do Imam de Al-Azhar a histórica, lúcida e desafiante declaração conjunta pela Fraternidade Humana e pela Paz no Mundo. 

Que convite para nos “fazermos ao largo” confiando em ti e na bondade do Homem. Ámen

Esch-sur-Alzette,10 de Fevereiro 2019

A FRATERNIDADE HUMANA EM PROL DA PAZ MUNDIAL E DA CONVIVÊNCIA COMUM

A FRATERNIDADE HUMANA EM PROL DA PAZ MUNDIAL E DA CONVIVÊNCIA COMUM

PREFÁCIO

A fé leva o crente a ver no outro um irmão que se deve apoiar e amar. Da fé em Deus, que criou o universo, as criaturas e todos os seres humanos – iguais pela Sua Misericórdia –, o crente é chamado a expressar esta fraternidade humana, salvaguardando a criação e todo o universo e apoiando todas as pessoas, especialmente as mais necessitadas e pobres.

Partindo deste valor transcendente, em vários encontros dominados por uma atmosfera de fraternidade e amizade, compartilhamos as alegrias, as tristezas e os problemas do mundo contemporâneo, a nível do progresso científico e técnico, das conquistas terapêuticas, da era digital, dos mass-media, das comunicações; a nível da pobreza, das guerras e das aflições de tantos irmãos e irmãs em diferentes partes do mundo, por causa da corrida às armas, das injustiças sociais, da corrupção, das desigualdades, da degradação moral, do terrorismo, da discriminação, do extremismo e de muitos outros motivos.

De tais fraternas e sinceras acareações que tivemos e do encontro cheio de esperança num futuro luminoso para todos os seres humanos, nasceu a ideia deste «Documento sobre a Fraternidade Humana». Um documento pensado com sinceridade e seriedade para ser uma declaração conjunta de boas e leais vontades, capaz de convidar todas as pessoas, que trazem no coração a fé em Deus e a fé na fraternidade humana, a unir-se e trabalhar em conjunto, de modo que tal documento se torne para as novas gerações um guia rumo à cultura do respeito mútuo, na compreensão da grande graça divina que torna irmãos todos os seres humanos.

DOCUMENTO

Em nome de Deus, que criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade e os chamou a conviver entre si como irmãos, a povoar a terra e a espalhar sobre ela os valores do bem, da caridade e da paz.

Em nome da alma humana inocente que Deus proibiu de matar, afirmando que qualquer um que mate uma pessoa é como se tivesse morto toda a humanidade e quem quer que salve uma pessoa é como se tivesse salvo toda a humanidade.

Em nome dos pobres, dos miseráveis, dos necessitados e dos marginalizados, a quem Deus ordenou socorrer como um dever exigido a todos os homens e de modo particular às pessoas facultosas e abastadas.

Em nome dos órfãos, das viúvas, dos refugiados e dos exilados das suas casas e dos seus países; de todas as vítimas das guerras, das perseguições e das injustiças; dos fracos, de quantos vivem no medo, dos prisioneiros de guerra e dos torturados em qualquer parte do mundo, sem distinção alguma.

Em nome dos povos que perderam a segurança, a paz e a convivência comum, tornando-se vítimas das destruições, das ruínas e das guerras.

Em nome da «fraternidade humana», que abraça todos os homens, une-os e torna-os iguais.

Em nome desta fraternidade dilacerada pelas políticas de integralismo e divisão e pelos sistemas de lucro desmesurado e pelas tendências ideológicas odiosas, que manipulam as ações e os destinos dos homens.

Em nome da liberdade, que Deus deu a todos os seres humanos, criando-os livres e enobrecendo-os com ela.

Em nome da justiça e da misericórdia, fundamentos da prosperidade e pilares da fé.

Em nome de todas as pessoas de boa vontade, presentes em todos os cantos da terra.

Em nome de Deus e de tudo isto, Al-Azhar al-Sharif – com os muçulmanos do Oriente e do Ocidente – juntamente com a Igreja Católica – com os católicos do Oriente e do Ocidente – declaramos adotar a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério.

Nós – crentes em Deus, no encontro final com Ele e no Seu Julgamento –, a partir da nossa responsabilidade religiosa e moral e através deste Documento, rogamos a nós mesmos e aos líderes do mundo inteiro, aos artífices da política internacional e da economia mundial, para se comprometer seriamente na difusão da tolerância, da convivência e da paz; para intervir, o mais breve possível, a fim de se impedir o derramamento de sangue inocente e acabar com as guerras, os conflitos, a degradação ambiental e o declínio cultural e moral que o mundo vive atualmente.

Dirigimo-nos aos intelectuais, aos filósofos, aos homens de religião, aos artistas, aos operadores dos mass-media e aos homens de cultura em todo o mundo, para que redescubram os valores da paz, da justiça, do bem, da beleza, da fraternidade humana e da convivência comum, para confirmar a importância destes valores como âncora de salvação para todos e procurar difundi-los por toda a parte.

Partindo duma reflexão profunda sobre a nossa realidade contemporânea, apreciando os seus êxitos e vivendo as suas dores, os seus dramas e calamidades, esta Declaração acredita firmemente que, entre as causas mais importantes da crise do mundo moderno, se contam uma consciência humana anestesiada e o afastamento dos valores religiosos, bem como o predomínio do individualismo e das filosofias materialistas que divinizam o homem e colocam os valores mundanos e materiais no lugar dos princípios supremos e transcendentes.

Nós, embora reconhecendo os passos positivos que a nossa civilização moderna tem feito nos campos da ciência, da tecnologia, da medicina, da indústria e do bem-estar, particularmente nos países desenvolvidos, ressaltamos que, juntamente com tais progressos históricos, grandes e apreciados, se verifica uma deterioração da ética, que condiciona a atividade internacional, e um enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido de responsabilidade. Tudo isto contribui para disseminar uma sensação geral de frustração, solidão e desespero, levando muitos a cair na voragem do extremismo ateu e agnóstico ou então no integralismo religioso, no extremismo e no fundamentalismo cego, arrastando assim outras pessoas a render-se a formas de dependência e autodestruição individual e coletiva.

A história afirma que o extremismo religioso e nacional e a intolerância geraram no mundo, quer no Ocidente quer no Oriente, aquilo que se poderia chamar os sinais duma «terceira guerra mundial aos pedaços»; sinais que, em várias partes do mundo e em diferentes condições trágicas, começaram a mostrar o seu rosto cruel; situações de que não se sabe exatamente quantas vítimas, viúvas e órfãos produziram. Além disso, existem outras áreas que se preparam a tornar-se palco de novos conflitos, onde nascem focos de tensão e se acumulam armas e munições, numa situação mundial dominada pela incerteza, pela deceção e pelo medo do futuro e controlada por míopes interesses económicos.

Afirmamos igualmente que as graves crises políticas, a injustiça e a falta duma distribuição equitativa dos recursos naturais – dos quais beneficia apenas uma minoria de ricos, em detrimento da maioria dos povos da terra – geraram, e continuam a fazê-lo, enormes quantidades de doentes, necessitados e mortos, causando crises letais de que são vítimas vários países, não obstante as riquezas naturais e os recursos das gerações jovens que os caraterizam. A respeito de tais crises que fazem morrer à fome milhões de crianças, já reduzidas a esqueletos humanos por causa da pobreza e da fome, reina um inaceitável silêncio internacional.

A propósito, é evidente quão essencial seja a família, como núcleo fundamental da sociedade e da humanidade, para dar à luz filhos, criá-los, educá-los, proporcionar-lhes uma moral sólida e a proteção familiar. Atacar a instituição familiar, desprezando-a ou duvidando da importância de seu papel, constitui um dos males mais perigosos do nosso tempo.

Atestamos também a importância do despertar do sentido religioso e da necessidade de o reanimar nos corações das novas gerações, através duma educação sadia e da adesão aos valores morais e aos justos ensinamentos religiosos, para enfrentarem as tendências individualistas, egoístas, conflituais, o radicalismo e o extremismo cego em todas as suas formas e manifestações.

O primeiro e mais importante objetivo das religiões é o de crer em Deus, honrá-Lo e chamar todos os homens a acreditarem que este universo depende de um Deus que o governa: é o Criador que nos moldou com a Sua Sabedoria divina e nos concedeu o dom da vida para o guardarmos. Um dom que ninguém tem o direito de tirar, ameaçar ou manipular a seu bel-prazer; pelo contrário, todos devem preservar este dom da vida desde o seu início até à sua morte natural. Por isso, condenamos todas as práticas que ameaçam a vida, como os genocídios, os atos terroristas, os deslocamentos forçados, o tráfico de órgãos humanos, o aborto e a eutanásia e as políticas que apoiam tudo isto.

De igual modo declaramos – firmemente – que as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram – nalgumas fases da história – da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens para os levar à realização daquilo que não tem nada a ver com a verdade da religião, para alcançar fins políticos e económicos mundanos e míopes. Por isso, pedimos a todos que cessem de instrumentalizar as religiões para incitar ao ódio, à violência, ao extremismo e ao fanatismo cego e deixem de usar o nome de Deus para justificar atos de homicídio, de exílio, de terrorismo e de opressão. Pedimo-lo pela nossa fé comum em Deus, que não criou os homens para ser assassinados ou lutar uns com os outros, nem para ser torturados ou humilhados na sua vida e na sua existência. Com efeito Deus, o Todo-Poderoso, não precisa de ser defendido por ninguém e não quer que o Seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas.

Este Documento, de acordo com os Documentos Internacionais anteriores que destacaram a importância do papel das religiões na construção da paz mundial, atesta quanto segue:

• A forte convicção de que os verdadeiros ensinamentos das religiões convidam a permanecer ancorados aos valores da paz; apoiar os valores do conhecimento mútuo, da fraternidade humana e da convivência comum; restabelecer a sabedoria, a justiça e a caridade e despertar o sentido da religiosidade entre os jovens, para defender as novas gerações a partir do domínio do pensamento materialista, do perigo das políticas da avidez do lucro desmesurado e da indiferença baseadas na lei da força e não na força da lei.

• A liberdade é um direito de toda a pessoa: cada um goza da liberdade de credo, de pensamento, de expressão e de ação. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos. Esta Sabedoria divina é a origem donde deriva o direito à liberdade de credo e à liberdade de ser diferente. Por isso, condena-se o facto de forçar as pessoas a aderir a uma determinada religião ou a uma certa cultura, bem como de impor um estilo de civilização que os outros não aceitam.

• A justiça baseada na misericórdia é o caminho a percorrer para se alcançar uma vida digna, a que tem direito todo o ser humano.

• O diálogo, a compreensão, a difusão da cultura da tolerância, da aceitação do outro e da convivência entre os seres humanos contribuiriam significativamente para a redução de muitos problemas económicos, sociais, políticos e ambientais que afligem grande parte do género humano.

• O diálogo entre crentes significa encontrar-se no espaço enorme dos valores espirituais, humanos e sociais comuns, e investir isto na propagação das mais altas virtudes morais que as religiões solicitam; significa também evitar as discussões inúteis.

• A proteção dos locais de culto – templos, igrejas e mesquitas – é um dever garantido pelas religiões, pelos valores humanos, pelas leis e pelas convenções internacionais. Qualquer tentativa de atacar locais de culto ou de os ameaçar através de atentados, explosões ou demolições é um desvio dos ensinamentos das religiões, bem como uma clara violação do direito internacional.

• O terrorismo execrável que ameaça a segurança das pessoas, tanto no Oriente como no Ocidente, tanto no Norte como no Sul, espalhando pânico, terror e pessimismo não se deve à religião – embora os terroristas a instrumentalizem – mas tem origem no cúmulo de interpretações erradas dos textos religiosos, nas políticas de fome, de pobreza, de injustiça, de opressão, de arrogância; por isso, é necessário interromper o apoio aos movimentos terroristas através do fornecimento de dinheiro, de armas, de planos ou justificações e também a cobertura mediática, e considerar tudo isto como crimes internacionais que ameaçam a segurança e a paz mundial. É preciso condenar tal terrorismo em todas as suas formas e manifestações.

• O conceito de cidadania baseia-se na igualdade dos direitos e dos deveres, sob cuja sombra todos gozam da justiça. Por isso, é necessário empenhar-se por estabelecer nas nossas sociedades o conceito de cidadania plena e renunciar ao uso discriminatório do termo minorias, que traz consigo as sementes de se sentir isolado e da inferioridade; isto prepara o terreno para as hostilidades e a discórdia e subtrai as conquistas e os direitos religiosos e civis de alguns cidadãos, discriminando-os.

• O relacionamento entre Ocidente e Oriente é uma necessidade mútua indiscutível, que não pode ser comutada nem transcurada, para que ambos se possam enriquecer mutuamente com a civilização do outro através da troca e do diálogo das culturas. O Ocidente poderia encontrar na civilização do Oriente remédios para algumas das suas doenças espirituais e religiosas causadas pelo domínio do materialismo. E o Oriente poderia encontrar na civilização do Ocidente tantos elementos que o podem ajudar a salvar-se da fragilidade, da divisão, do conflito e do declínio científico, técnico e cultural. É importante prestar atenção às diferenças religiosas, culturais e históricas que são uma componente essencial na formação da personalidade, da cultura e da civilização oriental; e é importante consolidar os direitos humanos gerais e comuns, para ajudar a garantir uma vida digna para todos os homens no Oriente e no Ocidente, evitando o uso da política de duas medidas.

• É uma necessidade indispensável reconhecer o direito da mulher à instrução, ao trabalho, ao exercício dos seus direitos políticos. Além disso, deve-se trabalhar para libertá-la das pressões históricas e sociais contrárias aos princípios da própria fé e da própria dignidade. Também é necessário protegê-la da exploração sexual e de a tratar como mercadoria ou meio de prazer ou de ganho económico. Por isso, devem-se interromper todas as práticas desumanas e os costumes triviais que humilham a dignidade da mulher e trabalhar para modificar as leis que impedem as mulheres de gozarem plenamente dos seus direitos.

• A tutela dos direitos fundamentais das crianças a crescer num ambiente familiar, à alimentação, à educação e à assistência é um dever da família e da sociedade. Tais direitos devem ser garantidos e tutelados para que não faltem e não sejam negados a nenhuma criança em nenhuma parte do mundo. É preciso condenar qualquer prática que viole a dignidade das crianças ou os seus direitos. Igualmente importante é velar contra os perigos a que estão expostas – especialmente no ambiente digital – e considerar como crime o tráfico da sua inocência e qualquer violação da sua infância.

• A proteção dos direitos dos idosos, dos vulneráveis, dos portadores de deficiência e dos oprimidos é uma exigência religiosa e social que deve ser garantida e protegida através de legislações rigorosas e da aplicação das convenções internacionais a este respeito.

Por fim, através da cooperação conjunta, a Igreja Católica e a al-Azhar anunciam e prometem levar este Documento às Autoridades, aos Líderes influentes, aos homens de religião do mundo inteiro, às organizações regionais e internacionais competentes, às organizações da sociedade civil, às instituições religiosas e aos líderes do pensamento; e empenhar-se na divulgação dos princípios desta Declaração em todos os níveis regionais e internacionais, solicitando que se traduzam em políticas, decisões, textos legislativos, programas de estudo e materiais de comunicação.

Al-Azhar e a Igreja Católica pedem que este Documento se torne objeto de pesquisa e reflexão em todas as escolas, nas universidades e nos institutos de educação e formação, a fim de contribuir para criar novas gerações que levem o bem e a paz e defendam por todo o lado o direito dos oprimidos e dos marginalizados.

Ao concluir, almejamos que esta Declaração:

seja um convite à reconciliação e à fraternidade entre todos os crentes, mais ainda, entre os crentes e os não-crentes, e entre todas as pessoas de boa vontade;

seja um apelo a toda a consciência viva, que repudia a violência aberrante e o extremismo cego; um apelo a quem ama os valores da tolerância e da fraternidade, promovidos e encorajados pelas religiões;

seja um testemunho da grandeza da fé em Deus, que une os corações divididos e eleva a alma humana;

seja um símbolo do abraço entre o Oriente e o Ocidente, entre o Norte e o Sul e entre todos aqueles que acreditam que Deus nos criou para nos conhecermos, cooperarmos entre nós e vivermos como irmãos que se amam.

Isto é o que esperamos e tentaremos realizar a fim de alcançar uma paz universal de que gozem todos os homens nesta vida.

Abu Dabhi, 4 de fevereiro de 2019.

          Sua Santidade                                             Grande Imã de Al-Azhar
           Papa Francisco                                              Ahmad Al-Tayyib                                                      

Mianmar: «Ajudar as pessoas a abrirem-se ao Transcendente»

Mianmar: «Ajudar as pessoas a abrirem-se ao Transcendente»

Leia, na íntegra, todo o dicurso do Papa Francisco.

Sinto grande alegria por estar convosco. Agradeço ao Ven. Bhaddanta Kumarabhivamsa, Presidente da Comissão Estatal Sangha Maha Nayaka, as suas palavras de boas-vindas e os seus esforços na organização da minha visita aqui hoje. Ao saudar-vos a todos, permiti-me manifestar particular apreço pela presença de Sua Excelência Thura Aung Ko, Ministro dos Assuntos Religiosos e da Cultura.

O nosso encontro é uma ocasião importante para renovar e fortalecer os laços de amizade e respeito entre budistas e católicos. É também uma oportunidade para afirmar o nosso empenho pela paz, o respeito da dignidade humana e a justiça para todo o homem e mulher. E não é só no Myanmar, mas em todo o mundo, que as pessoas precisam deste testemunho comum dos líderes religiosos. Com efeito, quando falamos a uma só voz afirmando o valor perene da justiça, da paz e da dignidade fundamental de todo o ser humano, oferecemos uma palavra de esperança. Ajudamos os budistas, os católicos e todas as pessoas a lutarem por uma maior harmonia nas suas comunidades.

Em cada idade, a humanidade experimenta injustiças, momentos de conflito e desigualdade entre as pessoas. No nosso tempo, porém, estas dificuldades parecem ser particularmente graves. Embora a sociedade tenha conseguido um grande progresso tecnológico e, em todo o mundo, as pessoas estejam cada vez mais conscientes da sua humanidade e destino comuns, as feridas dos conflitos, da pobreza e da opressão persistem e criam novas divisões. A estes desafios, não devemos jamais resignar-nos. Pois sabemos, com base nas nossas respetivas tradições espirituais, que existe realmente um caminho para avançar, há um caminho que leva à cura, à mútua compreensão e respeito; um caminho baseado na compaixão e no amor.

Quero expressar a minha estima a todos aqueles que vivem, no Myanmar, segundo as tradições religiosas do Budismo. Através dos ensinamentos de Buda e do testemunho zeloso de tantos monges e monjas, o povo desta terra foi formado nos valores da paciência, tolerância e respeito pela vida, bem como numa espiritualidade solícita e profundamente respeitadora do meio ambiente. Como sabemos, estes valores são essenciais para um desenvolvimento integral da sociedade, a começar pela unidade mais pequena e mais essencial que é a família para depois se estender à rede de relações que nos põem em estreita conexão – relações essas radicadas na cultura, na pertença étnica e nacional, e, em última análise, na pertença à humanidade comum. Numa verdadeira cultura do encontro, estes valores podem fortalecer as nossas comunidades e ajudar o conjunto da sociedade a irradiar a tão necessária luz.

O grande desafio dos nossos dias é ajudar as pessoas a abrir-se ao transcendente; ser capazes de olhar-se dentro em profundidade, conhecendo-se de tal modo a si mesmas que sintam a sua interconexão com todas as pessoas; dar-se conta de que não podemos permanecer isolados uns dos outros. Se devemos estar unidos, como é nosso propósito, ocorre superar todas as formas de incompreensão, intolerância, preconceito e ódio. Como podemos consegui-lo? As palavras de Buda oferecem a cada um de nós uma guia: «Vence o rancor com o não-rancor, vence o malvado com a bondade, vence o avarento com a generosidade, vence o mentiroso com a verdade» (Dhammapada, XVII, 223). Sentimentos semelhantes se expressam nesta oração atribuída a São Francisco de Assis: «Senhor, fazei-me instrumento da vossa paz. Onde houver ódio fazei que eu leve o amor, onde houver ofensa que eu leve o perdão, (…) onde houver trevas que eu leve a luz, e onde houver tristeza que eu leve a alegria».

Que esta Sabedoria continue a inspirar todos os esforços para promover a paciência e a compreensão e curar as feridas dos conflitos que, ao longo dos anos, dividiram pessoas de diferentes culturas, etnias e convicções religiosas. Tais esforços não são em caso algum prerrogativa apenas de líderes religiosos, nem são de competência exclusiva do Estado. Mas é a sociedade inteira, são todos aqueles que estão presentes na comunidade que devem partilhar o trabalho de superar o conflito e a injustiça. No entanto, é responsabilidade particular dos líderes civis e religiosos garantir que cada voz seja ouvida, de tal modo que os desafios e as necessidades deste momento possam ser claramente compreendidos e confrontados num espírito de imparcialidade e mútua solidariedade. A propósito, congratulo-me com o trabalho que a Panglong Peace Conference está a fazer, e rezo por aqueles que guiam este esforço para que possam promover uma participação cada vez maior de todos os que vivem no Myanmar. Isto contribuirá certamente para o compromisso de promover a paz, a segurança e uma prosperidade que seja inclusiva de todos.

Para que estes esforços produzam frutos duradouros, tornar-se-á necessária, sem dúvida, uma maior cooperação entre líderes religiosos. A este respeito, quero que saibais que a Igreja Católica é um parceiro disponível. As oportunidades de encontro e diálogo entre os líderes religiosos revelam-se um fator importante na promoção da justiça e da paz no Myanmar. Bem sei que, no passado mês de abril, a Conferência dos Bispos Católicos organizou um encontro de dois dias sobre a paz, em que participaram os chefes das diferentes comunidades religiosas, juntamente com embaixadores e representantes de agências não-governamentais. Devendo aprofundar o nosso conhecimento mútuo e afirmar a nossa interligação e destino comum, são essenciais tais encontros. A verdadeira justiça e a paz duradoura só podem ser alcançadas, quando forem garantidas a todos.

Queridos amigos, possam os budistas e os católicos caminhar juntos por esta senda de cura e trabalhar lado a lado pelo bem de cada habitante desta terra. Nas Escrituras cristãs, o apóstolo Paulo desafia os seus ouvintes a alegrar-se com os que estão alegres, a chorar com os que choram (cf. Rm 12, 15), carregando humildemente os pesos uns dos outros (cf. Gal 6, 2). Em nome dos meus irmãos e irmãs católicos, expresso a nossa disponibilidade para continuar a caminhar convosco e a espalhar sementes de paz e de cura, de compaixão e de esperança nesta terra.

De novo vos agradeço por me terdes convidado para estar hoje aqui convosco. Sobre todos vós, invoco a bênção divina da alegria e da paz.

Tradução Educris a partir do original em italiano

Imagem: ACI Stampa

http://www.educris.com/v3/noticias/7485-mianmar-ajudar-as-pessoas-a-abrirem-se-ao-transcendente