Migrações – Uma década que transformou Portugal
Quando em 1984 fui chamado para trabalhar, em Lisboa, na pastoral das migrações como director nacional da OCPM, toda a experiência por mim adquirida e, em geral, a que possuía a Igreja em Portugal localizava-se na emigração portuguesa no estrangeiro e suas consequências no nosso país.
O número inacreditável de compatriotas no exterior do país, arrastando dificuldades e problemas, diferentes conforme o país onde se encontravam, mas comuns em gravidade e duração, alimentava profundas preocupações à Igreja e desgastava o melhor da sua energia e dos seus meios. Separação da família, ilegalidades de estadia e trabalho, riscos de viagem, exploração dos passadores e dos empregadores, condições desumanas de habitação, ignorância das leis e das protecções legais a que tinham direito, rupturas psíquicas e morais resultantes de fortes tensões nervosas, o atendimento espiritual a tantas comunidades de emigrantes, eram algumas das muitas necessidades a que a Igreja devia dar resposta ou promover respostas adequadas, sem o conseguir devidamente.
A OCPM aplicou-se com denodo, até ao início da década de 90, na procura de agentes pastorais que servissem nas importantes comunidades de emigrantes, muitas insistentes e até agressivas na exigência de sacerdotes. Tentámos convencer os bispos desses países, dada a falta crónica de padres portugueses, a disponibilizar sacerdotes que viessem aprender a língua e os nossos costumes durante curtas estadias em Portugal que serviriam de estágio para depois poderem servir as nossas comunidades nos seus países. Entretanto, procurávamos de vários modos, contactar essas comunidades portuguesas com visitas pastorais, presença nas festas de Nossa Senhora de Fátima, participação nos jornais da emigração portuguesa, programas de rádio internacional, transmissão da missa dominical na RTP internacional, correspondência intensa com emigrantes, etc. Este esforço era cada vez mais posto em causa por muitas pessoas, levantando dúvidas igualmente à nossa Hierarquia sobre a sua utilidade e necessidade actual. A concessão de mais padres, mesmo temporária e limitadamente, foi cancelada após os nossos bispos considerarem convictamente que os portugueses estavam definitivamente integrados nos vários países onde residiam, sem necessidade de mais ligames com a Igreja de origem. A continuidade da Obra de Migrações começava a não se justificar e a sua caducidade tornava-se evidente dada a nova mentalidade sobre o assunto.
Eis, contudo, nesses mesmos anos 90, a emergência de um novo fenómeno migratório com traços surpreendentes de crescimento rápido e sinais de trágica urgência: milhares de cidadãos africanos, dos países de língua portuguesa procuram no nosso país paz e pão. Os fluxos crescem, ninguém aqui está preparado para os acolher. Essas ondas de imigração diversificam de origem: vêm agora do Brasil, de outros países africanos, do Médio Oriente, da Ásia. Incomodado este país pela clandestinidade de tanta gente, decidiu o governo um período extraordinário de legalização ao qual a OCPM prestou o seu melhor apoio, mas, no seu termo, deixou-nos um amargo sabor de fruto inacabado e ineficaz. Passados poucos anos um 2º período de legalização se apresenta, agora com uma participação mais aberta dos próprios imigrantes e suas associações, assim como da Igreja (por várias instituições e organizações pastorais e de solidariedade social) e dos sindicatos. O esforço, levado ao seu extremo, foi extenuante. A sensação final foi a de que, Portugal, uma vez atingido pela imigração, não se libertará de clandestinos e ilegais pelo processo de períodos de legalização. A partir de então, a imigração faz parte da nossa paisagem.
Os problemas sociais trazidos pela imigração foram crescendo em número e gravidade. A OCPM não quis passar ao lado das situações de emergência que surgiram. A Igreja apoiou e contribuiu com a sua ajuda. O Estado confiou na Obra de Migrações e esta organizou com associações de imigrantes uma rede de pequenos apoios de vária ordem: satisfação de necessidades primárias, esclarecimentos sobre direitos, formação, acompanhamento de crianças, procura de trabalho e habitação e, sobretudo, legalização de pessoas. O trabalho foi enorme e tão exigente que se levantaram vozes de resistência mesmo no seio da Igreja.
Quando em 2000 chegou a hora de passar o testemunho para o meu sucessor disse-lhe: “A Obra de Migrações não está prestes a desaparecer pois as migrações não tendem a diminuir. Recebes sim, uma ‘uma panela a ferver em total ebulição’.”
Pe. Manuel Soares
Ex-Director da Obra Católica Portuguesa de Migrações