“OS CIGANOS”: UM INVISÍVEL IMPERATIVO DE LIBERDADE (7 Margens)
Por Maria Manuela Carneiro de Sousa (29 dez 19)
À medida que crescia, Ruy considerava pequeno o espaço que o rodeava, tendo em conta o desejo que o habitava, de ser inteiramente livre. Um mundo de horas certas para tudo, de regras e leis, aliado à inquietante ternura da sua família, não lhe permitia ser livre. Certo dia, o tambor dos ciganos despertou-o para a possibilidade de dominar o tempo, o espaço e a força e Ruy não só saltou o muro da sua casa como saltou também o dos preconceitos, que eram como uma voz obscura, vinda do passado, que lhe dizia “foge”.
Decidido a seguir os ciganos, Ruy escondeu-se na carroça, mas foi descoberto por um gato chamado Polícia. Gela, a rapariga cigana que andava no arame, iniciou-o na cultura dos calons, pertencentes ao povo Rom: costumes, tradições e língua. Gela também o apresentou ao seu pai, que lhe disse ser Tomás Sabba, o chefe do clã, que lhe explicou que os segredos dos calon são “tão antigos como o próprio tempo”. Ruy ficou desse modo a saber que, apesar de serem poucos, os calons transportavam uma grande riqueza.
Para perceber quem era aquele rapaz, o chefe dos ciganos procurou a ajuda de Tshilabba, uma velha, muito velha. Esta velha, com poderes que não são deste mundo e muito escutada pelos chefes ciganos antes de tomarem decisões, limitou-se a afirmar que Ruy “possuía os dons necessários para concretizar os seus sonhos, além de ser capaz de percorrer muitas estradas sem nunca esquecer o caminho para casa”. Então, Tomás Sabba decidiu enviar o rapaz para casa, mas, antes, permitiu que ele aprendesse a arte dos ciganos e experimentasse a sua liberdade.
Tomás Sabba, que não esperava receber uma lição de liberdade de um gadjó, compreendeu que, ao contrário do que ele pensava, calons e gadjós juntavam-se. Gela, o seu irmão e Ruy nem precisaram de falar muito para perceberem que, a partir daquele dia, seriam amigos para sempre. Agora que Ruy “aprendera a respeitar o tempo e o espaço das coisas” fazia o que antes lhe parecia impossível. Por sua vez, Gela absorvia os números e as letras que ele lhe ensinava. Na despedida, Tomás Sabba, o chefe do clã, disse-lhe: “Não és um calon… mas podias ser”.
Desde sempre, que Ruy achava que “algures no vasto mundo se estava a preparar uma festa incrível à qual ele estava impedido de assistir.” Mas, naquele momento, Ruy não só assistia como participava nessa festa.
Percebe-se, nesta história, que temos de agradecer aos ciganos guardarem na sua cultura a autenticidade, a liberdade e o amor à natureza, que tanto faltam à humanidade. Mas a concretização do sonho da união entre gadjós e calons ainda mal começou. Este sonho corresponde a um apelo antigo de ir mais além, alargando horizontes e ultrapassando as barreiras do quotidiano, feitas de regras e horas certas. No entanto, permanece a esperança de ser possível caminharmos unidos, sem que ninguém perca o caminho para casa.
Fica feito o convite a seguir um invisível imperativo de verdade e de liberdade, de forma a sermos capazes de saltar os muros dos preconceitos, que nos separam e impedem de participar na festa da fraternidade, preparada pelo diálogo respeitador e amistoso entre diferentes.
Os Ciganos, conto inédito de Sophia de Mello Breyner Andresen, completado pelo neto, Pedro Sousa Tavares