Visão (19 maio)

Alcina Faneca: “Não sou menos cigana porque estudei e me tornei uma mulher independente”

Licenciada em Direito e especializada em Direito Criminal, a advogada de 28 anos, com escritório em Trás-os-Montes, sempre teve o apoio da família para seguir o sonho de ser juíza, mas a sua comunidade apontou-lhe o dedo – por Sónia Calheiros. excertos

Alcina Faneca (AF) abriu o seu escritório há dois meses, em parceria com dois colegas de Esposende, mas está sozinha em Torre de Moncorvo. Não pretende ser advogada só de pessoas de etnia cigana, mas de todas as pessoas que a procurarem.

Refere que “sempre sonhei ser juíza desde que comecei a ouvir dizer que as decisões em relação à etnia cigana nem sempre eram imparciais”. “Faziam-me confusão certas situações que envolviam as pessoas da comunidade. Queria conseguir fazer justiça e reverter a situação. Agora, vou ganhar experiência e, daqui a meia dúzia de anos, quando a minha filha for mais crescida, concorro ao Centro de Estudos Judiciários pela via profissional”.

 

AF começou a perceber que existia diferença entre ela e as outras raparigas ciganas “principalmente quando fui para a faculdade no Porto, por volta dos 20 anos. Depois do ensino secundário (…), algumas quiseram dar seguimento aos estudos e já não puderam, porque a faculdade é longe – a mais próxima fica, pelo menos, a uma hora de casa -, e aí o acesso à educação era-lhes vedado. Mas comigo isso não aconteceu. Quando terminei o 12° ano, o meu pai começou logo a procurar a melhor faculdade de Direito para mim”.

 

“Os meus pais sempre me disseram, a mim e aos meus irmãos: ‘Tens de fazer a diferença.’ Na comunidade, entre as pessoas mais próximas, havia quem discordasse de eu ir estudar para fora, mas isso não fazia diferença na minha vida. Ouvíamos comentários menos bons, mas o meu pai nunca lhes deu ouvidos, ignorava-os.”

“Respeito a minha comunidade e a forma como quer viver e trabalhar, normalmente a vender, mas não concordo com alguns aspetos. Há valores que não aceito para a minha filha, agora com 3 anos, como deixar de estudar aos 13 para casar, que não possa ir para a faculdade, não possa ter amigos rapazes que não sejam ciganos ou não possa sair para jantar fora com as amigas”.

“As outras mulheres da comunidade não o fazem porque fica mal aos olhos dos outros. Eu não me importo com o que pensam. Todos temos direito à liberdade de expressão e a fazer o que bem entendermos, sem prejudicar os outros. Hoje só não muda quem não quer. Mas viver numa família muito conservadora pode não ajudar. Nesses casos, a força da família é muito maior do que a da mulher sozinha, e são ainda poucas as mulheres a arriscar ter uma vida diferente”, “Tenho muito orgulho em ser cigana”.

“Não sou menos cigana porque estudei, fiz o meu percurso e me tornei uma mulher independente e realizada. Isso só nos torna mulheres mais felizes e completas, sem sermos dependentes de um homem – um conselho, aliás, que sempre ouvi do meu pai. Na universidade, os meus professores, quando souberam que era cigana, até ficaram felizes por ali estar. Na altura, passei por uma situação em que o meu pai teve um problema e tive de faltar às aulas – todos facilitaram imenso e ajudaram-me”.

“É preciso mudar a forma de educar meninas e meninos. …  Estamos a progredir e vamos no bom caminho, mas quando vou a escolas fazer palestras, noto que há crianças com sonhos, mas também entraves familiares que não as deixam avançar. Ninguém tem o direito de cortar as asas e não deixar concretizar o sonho. Espero que a minha filha tenha gosto em estudar e siga a profissão que quiser.”