O esquecimento pode deixar no seu rasto consequências nefastas. O esquecimento coletivo resulta na perda da memória de um povo, de uma confissão religiosa, de um grupo… E isso poderá traduzir-se num caminho enviesado, numa perversão cultural, numa infidelidade religiosa.
Quando Bento XVI renunciou ao ministério petrino, o esquecimento coletivo de seiscentos anos fez estremecer muitos cristãos, convictos de que esse serviço era vitalício. Leigos e ministros ordenados espantaram-se. E nem faltou quem quisesse culpá-lo de ter abandonado a cruz. E o Papa emérito estava simplesmente a repor uma possibilidade que faz parte da normalidade de vida. Excecional – é certo – mas real.
O Concílio Vaticano II veio recordar-nos que o sacramento primordial é o Batismo. Nós somos o novo Povo de Deus, com igual dignidade para todos os seus membros. A comunhão dos batizados transforma-se em comunhão orgânica, com diversidade de funções e ministérios, na medida do seu crescimento, das suas necessidades. Foi assim ao princípio, como poderemos facilmente depreender de uma leitura atenta dos Atos dos Apóstolos. O ministério ordenado é criado pelo Senhor, mas para servir a Comunidade.
As facilidades posteriores de existência das Comunidades cristãs, o seu crescimento nem sempre harmonioso e proporcionado, o contágio com os critérios de poder das sociedades civis, rapidamente levaram ao esquecimento da realidade primordial de Povo de batizados, desenvolvendo um culto de organização hierárquica, que nos conduziu a uma divisão absurda entre hierarquia e laicado, com a assunção esplendorosa dos hierarcas e a minimização – até à humilhação – da multidão laical.
Apesar das excelentes afirmações de princípio dos textos do Concílio, recriando o clima de retorno às origens, as marcas do esquecimento são ainda hoje muito profundas: subsiste esta visão perversa de uma Igreja hierárquica superior, em aposição a uma massa indiferenciada de fiéis anónimos, aos quais se concedem uns arremedos de “promoção ministerial extraordinária”… Como se os leigos não fossem, por vocação, pedras vivas do Templo do Senhor, a seu modo, como é evidente, nos seus campos específicos, como é normal.
Em plena Semana de Oração pelas Vocações, vale a pena recuperar a memória dos princípios, trabalhar afincadamente e rezar com convicção, para que cada batizado escute a voz de Deus, procure discernir o projeto que Ele tem para si e corajosamente assuma o caminho a que o Senhor o chama: no compromisso laical, na vida religiosa, no ministério ordenado.
Ao celebrar e conviver diariamente com uma Comunidade, vestindo-se sem pompa, dispensando-se de adereços exteriores de “supremacia”, o Papa Francisco está a indicar-nos o caminho desta normalidade de vida cristã a reconquistar, reavivando a memória do que é a vida em Cristo, numa pluralidade cooperante de ministérios e serviços, a qual é servida por uma estrutura indispensável, que a suporta mas a não domina nem perverte.
