A Covid-19 é uma doença nova. De repente, um novo coronavírus – SARS-CoV-2 – provocou uma pandemia. Uma situação desconhecida de todos, com contornos que ninguém sabe o que esperar, a não ser que é grave, muito grave, e que o sistema de saúde pode entrar em rotura. Os hospitais são obrigados a reorganizarem-se, a esquecer a normal divisão de serviços por especialidades, a mobilizar todos os recursos materiais e humanos. Normas da Direção Geral de Saúde a saírem a todo o minuto.
O medo do desconhecido presente desde o primeiro minuto, o trabalho é exaustivo e em várias frentes:
Há que deslocar serviços confinando espaços, onde é normalmente a ortopedia tem de passar a ser ortopedia e cirurgia. Onde são as cirurgias vai passar a ser internamento COVID.
Há que dividir os recursos humanos, ter em conta que cada enfermeiro tem também uma história associada: ou tem já alguma idade, ou está a amamentar, ou está gravida, ou tem uma doença crónica… E não podem estar em contacto com o vírus
Há que ter em conta que montar um serviço desta natureza implica uma especificidade enorme; desde todos os equipamentos de proteção necessários, aos ventiladores, aos monitores, à medicação, não pode faltar nada, mas não pode estar nada a mais sob o risco de ter de ir para incinerar. É necessário criar circuitos, zonas limpas e zonas sujas, tudo o que entra só pode sair duplamente embalado ou para a esterilização ou para incinerar. Até a alimentação dos profissionais tem de ser em embalagens descartáveis. Os serviços não estão preparados, mas todo o pessoal tem que tomar banho antes de sair e trocar de roupa, coisas simples, mas como se o balneário é fora do serviço?
Há que formar e treinar as equipas, por exemplo o fato de proteção tem normas muito especificas de vestir e despir, o mínimo erro e está tudo conspurcado. Todas as normas têm de ser cumpridas, que papel difícil o de conseguir transmitir segurança à minha equipa.
Há que redefinir horários, quanto menos vezes entrarem e saírem melhor, turnos maiores permitem também um intervalo maior fora do serviço (apesar de confinados sem irem ter com a família), por outro lado ninguém aguenta mais de 4 horas dentro dos fatos.
Como enfermeira gestora, confesso que foi muito difícil, como gerir tudo isto mantendo uma equipa motivada, motivada para fazer bem, com todos os medos associados. Foram noites sem conseguir dormir. Vir a casa foi sempre um porto de abrigo, mas não tinha o direito de partilhar tudo o que estava a viver com o meu marido, não o podia preocupar ainda mais. Ninguém está preparado para sofrer um embate destes. Foi uma experiência inesquecível, e terrivelmente marcante.
Os doentes começaram a chegar, é simplesmente horrível. Hipoxia é o sintoma mais comum. Hipoxia significa que existe uma baixa quantidade de oxigénio necessária para manter as suas funções vitais no sangue. Normalmente manifesta-se por dispneia, franca dificuldade respiratória, pela incapacidade de se terminar frases, cansaço extremo e uso de músculos acessórios da respiração, dores que nem eles conseguem definir.
Em poucas horas este doente tem necessidades de ser ventilados. Emergência que temos de responder e que nem sempre tem o melhor final, sobretudo nos doentes mais idosos. Nunca me vou esquecer dos olhos cheios de dúvidas e angústia daquela senhora que lutou 16 dias com os seus 102 anos e não conseguiu sobreviver, não teve sequer o direito a despedir-se da sua família.
No meio de toda esta luta não podia ignorar a necessidade de todos os dias ter de repor stocks, era indispensável que não tivéssemos nenhuma falta de materiais. As notícias apontavam para ruturas e ruturas podiam implicar a contaminação da equipa que sou responsável, Isso não podia acontecer. Felizmente não aconteceu, no nosso hospital não faltou materiais embora com uma gestão muito criteriosa.
Pouco a pouco a situação foi melhorando e hoje já estamos com o nosso serviço de cirurgia a funcionar normalmente. E eu estou imensamente grata à minha equipa, vivemos momentos muito difíceis, mas união não faltou com trabalho de excelente qualidade e uma disponibilidade total.
Um sentimento perdura, os enfermeiros são peças fundamentais de um sistema que sem eles não funciona e só são devidamente valorizados numa pandemia, fora esta situação, são pessoal de segunda, muito pouco respeitados e valorizados por quem mais precisa deles, a população em geral.
Graciete Marques
Militante do grupo Caminhar de Cacia
Diocese de Aveiro