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O pintor surrealista René Magritte dizia: “Tudo quanto vemos, esconde alguma coisa”.
Palavras de artista que enxerga novos significados para o que nós, humanos simples, chamamos de realidade. Não é somente a arte, no entanto, que interpreta o que os olhos veem e aproxima novas realidades. Os olhos da fé perscrutam ainda mais profundamente o que os acontecimentos da vida podem revelar.

Uma mensagem que não pode ser ignorada é a permanente encarnação da divindade na humanidade. É bom lembrar que o Rei dirá tanto aos justos, quanto aos que não merecem o prémio: “Em verdade vos digo que quanto fizestes a um destes meus irmãos mais pequenos, a mim o fizestes (Mateus, 25,40).

Hoje, por causa de guerras, fome, perseguições, injustiças, milhões de pessoas fogem de sua terra, abandonam tudo, em fuga, diante da ferocidade dos herodes atuais. Homens levando o quase nada que sobrou da destruição de suas casas, as mães carregando os filhos: José que leva uma trouxa de roupas e Maria com Jesus em seu colo, emigrantes que fogem de Herodes. A perseguição aos filhos de Deus continua: todos à procura de um abrigo… haverá uma hospedaria para eles?

Deu à luz o seu primogénito, envolveu-O em panos e o colocou-O numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.
(Lucas, 2,7)

Quem acolhe, hoje, as sagradas famílias em fuga?

Mulher Rohingya com o seu filho, uma entre os mais de 650.000 refugiados escorraçados de Myanmar. Foto EPA/NYUNT WIN
Mulher Rohingya com o seu filho, uma entre os mais de 650.000 refugiados escorraçados de Myanmar. Foto EPA/NYUNT WIN

Podemos oferecer abrigo às “sagradas” famílias à procura de alguém que as acolha? O Natal, festa da família, está a chegar. O coração amolece e colocamos em ação emoções e poesia, essenciais, mais do que a razão e a filosofia, para a vida.

Ao remexer em recordações, lembro-me de uma mensagem islamita que diz muito sobre Deus, “o Clemente, o Misericordioso” (como repete insistentemente o Alcorão).
Ao fiel que lhe pede para ser guardado do pecado, Alá diz:

Ó Ibrahim, pedes-me para te livrar do pecado; é o que todos os meus servos me pedem. Mas se eu te preservar do pecado, também te privaria da minha misericórdia.
Se todos os homens fossem inocentes, a quem poderia conceder a minha graça?.

Sempre que nasce uma criança é sinal de que Deus ainda acredita no ser humano

Na manjedoura, entre Maria e José, um bebé. A antiga sabedoria diz que “sempre que nasce uma criança é sinal de que Deus ainda acredita no ser humano”. Mas, como nos alerta Leonardo Boff, aquele bebé é especial: “Todo menino quer ser homem. Todo homem quer ser rei. Todo rei quer ser deus. Só Deus quis ser menino”.

E Fernando Pessoa:

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

As palavras do poeta descortinam horizontes com a afetuosidade que não encontramos nas palavras de muitos teólogos, mas que encontramos no salmo 8 da Bíblia: “A força do nosso Deus é a mesma força da candura da criança, diante da qual até os mais violentos ficam desarmados”.

Como pode Deus renunciar à sua omnipotência?

Uma criança deitada numa manjedoura não intimida e aproximamo-nos surpreendidos: como pode Deus renunciar à sua omnipotência? Ele mesmo nos confidencia: a sua omnipotência não resiste à misericórdia.

A criança que tem por berço a manjedoura é o mesmo Deus que se deixou condicionar pelo seu amor, pela sua infinita misericórdia.

Há algum pecado que vença a misericórdia de Deus? Talvez. A culpa mais grave é não querer ser amado. Disso depende todo o mal.

A omnipotência de Deus está na decisão de amar; o poder do homem começa quando aceita ser amado.

É o que Natal nos indica: Deus pede permissão para que o seu amor chegue até nós e, através de nós, chegue aos outros. Seremos nós porta-vozes de Deus, ajudando nessa missão?