A Árvore de Zaqueu É impressionante a imagem dos altos montes a serem abatidos e os vales profundos terraplanados por acção de Deus. É nestes termos que Baruc, secretário do profeta Jeremias durante a deportação dos Judeus em Babilónia, no séc. VI antes de Cristo, nos apresenta os cativos «regressando como filhos de reis» (1.ª leitura), como que na alegria e segurança de uma gloriosa «passadeira vermelha». Através desta «materialização» da acção salvadora de Deus, traduz o reconhecimento da sua presença na nossa história, como aquele que dá o sentido profundo das tristezas e alegrias.
Mas o evangelho traz uma diferença significativa: somos nós que devemos meter mãos a esse trabalho ciclópico, para que a salvação se vá tornando realidade. O próprio Jesus é salvador – mas foi «operário da salvação».
Todos nós somos necessários para a grande equipa de planeamento e execução do melhor trajecto. A 2.ª leitura lembra que a todos também é pedido o exercício da capacidade de «discernimento», que nos permite distinguir o que é «mais conveniente».
Para começar, todas as Igrejas cristãs precisam de fazer o levantamento das próprias «tortuosidades», do presente mais do que do passado, e assim terem autoridade para apontar as tortuosidades da sociedade civil, particularmente os crimes de ordem económica e política (que imperam sobre os vários tipos de guerra e de perseguição).
E ainda, dar nova vida à histórica função de «Igreja educadora» (apesar dos erros de muitos «mestres» e da preguiça e mau comportamento de muitos «alunos»).
Todo o mundo só ganharia se, para além de uma honesta e crítica gestão das escolas cristãs, estas contribuíssem para estudos alternativos da organização e governação de um país, no qual a economia seja «a casa» («oikos») em que a pessoa humana se sente à vontade para descobrir os seus próprios «princípios directivos» («nómos»/«nomia»). E a religião está profundamente intrincada com a política – ao contrário do que tantas vezes se diz (com o perigo de ser uma desculpa para não contribuir para a desejável mudança da sociedade). Aliás, a «doutrina social da Igreja» continua a manifestar potencialidades de renovação e de crítica não só das formas de acção mas dos próprios princípios. Aumentou assim a esperança de viver desde já a nossa salvação.
(Uma nota, porém: não valeria a pena substituir «doutrina», termo de conotações dogmáticas e de estagnação, por outro mais apelativo da intervenção social – pelo menos qualquer coisa como «orientações sociais»?).
Ao longo da bimilenária história da Igreja, surgiram vários movimentos de ascetismo pouco equilibrado, acautelando os projectistas dos novos caminhos para o perigo de se distraírem do objectivo principal, sobretudo com a tentação de olhar apenas para o prazer pessoal – na riqueza, no poder, no sexo, na política, na religião…
A própria vida de família e a vida de trabalho foram catalogadas depreciativamente como «cuidados do mundo», ganhando um significado terrivelmente pessimista e negativo. Porém, o «mundo» continua a ser a «tudo aquilo que era bom» como projecto de Deus (Génesis 1,3-25), e é também o espaço-tempo onde o ser humano tem que escolher entre o bem e o mal, sabendo que os defensores da justiça são frequentemente perseguidos. Acontece que a confusão deste mundo é tanta que chegamos a pensar nele só como terreiro do mal…
Por isso, ninguém devia cruzar os braços perante este grande projecto de um mundo melhor, não esquecendo que «o trabalho do menino é pouco mas quem o despreza é louco». «Think positive» – será o lema das leituras de hoje. Com efeito, não se referem apenas à colheita «no fim dos tempos», mas ao semear e recolher nesta vida.
A oração da liturgia de hoje pede a Deus «que os cuidados deste mundo não sejam obstáculo para caminhar generosamente ao encontro de Cristo» – até porque são também o caminho de Deus. Porém, o resto da oração mais parece pedinchar «um lugarzinho no céu». Com ligeiras alterações, podia ficar assim: «que a sabedoria do Alto» nos ajude a tirar bom proveito dos «cuidados deste mundo», sem nos afundarmos neles nem perdermos o sentido das coisas. Também tecemos com eles a grande «passadeira vermelha».
Manuel Alte da Veiga
m.alteveiga@netcabo.pt
(Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico)