O ABISMO
Este número da Caravana refere as excelentes iniciativas da UE, através da sua Agência para os Direitos Fundamentais (FRA), no âmbito da participação das organizações da sociedade civil (OSC), com relevo para as OSC ciganas, no novo Enquadramento da UE para a Igualdade, Inclusão e Participação dos Ciganos 2021-2030 e sobretudo para o impulso que está a dar ao incremento do cumprimento dos direitos humanos a nível regional e local através da notável iniciativa das Cidades dos Direitos Humanos em cujo Relatório, lamentavelmente, apenas uma cidade portuguesa é nomeada: Braga. Neste número são ainda relatadas iniciativas a que o Papa Francisco, graças ao Espírito Santo que o inspira, exemplarmente já nos habituou, e ainda os excelentes exemplos da Câmara Municipal de Mourão e os casos de sucesso de um cigano e de uma cigana e da Associação TECHARI.
Então porquê o título dramático deste editorial? Repare-se na fotografia que é realçada nesta primeira página: uma barraca de ciganos nómadas compulsivos nos arredores de Évora, que apesar de terem todos os seus laços sociais institucionais – escolas, saúde, segurança social – em Évora donde são naturais, é-lhes negado por este município o direito e inscrever-se na lista de futuros, potenciais candidatos a uma habitação condigna, porque “não são de cá”, e são periódica e sistematicamente escorraçados de município em município, como se não tivessem direito a viver, a ser portugueses, a ter direitos sequer. A culpa é sempre dos outros, nossa é que não é; não cumprem os requisitos feitos, não queremos julgar intenções, mas apetece pensar, precisamente para os excluir.
E onde é que está o abismo? O abismo está na miséria absoluta destes sem abrigo, não por pobreza apenas, mas por UMA INTENCIONAL EXCLUSÃO ÉTNICA: se fossem imigrantes, refugiados, o enquadramento, as simpatias, os apoios oficiais, políticos e sobretudo factuais seriam completamente outros, e ainda bem. Mas ciganos? E entre esta situação desesperada que até estrangeiros de boa vontade vêm fotografar, como a autora desta fotografia fez, para espanto do que de facto está a acontecer numa nação que até ocupou há bem pouco tempo a Presidência da UE e que se diz católica, e a lentidão, as hesitações, as elucubrações políticas, técnicas, legislativas, estratégicas ou de imagem cujos resultados são a continuação por décadas do sofrimento, da miséria, da injustiça, da exclusão, do menosprezo de mais de uma centena de portugueses, esse é o ABISMO.
Houve um governo, não há muitos anos, que decidiu acabar com as barracas neste país: e aí começou o movimento de realojamento de milhares de pessoas. Houve uma Câmara Municipal que decidiu acabar com as barracas no seu Concelho, e as barracas foram substituídas por realojamento nesse Concelho. Houve uma Câmara Municipal, e certamente terá havido outras que decidiu realojar os ciganos que viviam nessa cidade e os ciganos foram realojados nessa cidade. A isto chama-se decisão, consciência social, não apenas de palavras, mas por decisões que se tomam e se implementam até ao fim. Para quando esta forma de governar a nível nacional, regional e local em Portugal?
Francisco Monteiro