PORTUGAL CATÓLICO. A BELEZA NA DIVERSIDADE: UM CAPÍTULO SOBRE A COMUNIDADE CIGANA

Do capítulo sobre a “comunidade cigana”, da autoria da Professora Doutora Manuela Mendonça, Presidente do Secretariado Diocesano de Lisboa da Pastoral dos Ciganos, no livro “Portugal Católico. A Beleza na Diversidade”, publicado pelo Círculo de Leitores e que foi oferecido ao Papa Francisco, publicamos o seguinte excerto:

CIGANOS EM PORTUGAL

 

… A presença do grupo cigano em Portugal tem mais de cinco séculos. O primeiro testemunho escrito que se lhe refere é anterior a 1516. Trata-se de uma poesia sarcástica, em que aparece ligado à magia (Cancioneiro Geral). Em 1521, Gil Vicente escreveu o Auto das Ciganas. … Considerando o conhecimento manifesto nestes textos, acreditamos numa presença do grupo em Portugal desde a segunda metade do seculo XV.

Olhados inicialmente com curiosidade pelas populações, rapidamente se manifestou a desconfiança nesses recém-chegados, de vida e aparência estranhas. Eram nómadas que, sem meio de subsistência, se dedicavam a actividades menos convencionais. Considerados marginais, em breve se viram acusados de toda a espécie de males que assolavam o reino. E a sucessiva chegada de novos grupos intensificou o descontentamento dos portugueses.

Os ciganos passaram então a ser olhados como indesejados. Por isso as queixas não se fizeram esperar, registando-se as primeiras nas Cortes de 1525. Pedia-se ao rei que “…aja por bem que em tempo algum entrem ciganos em vossos reinos, porque deles não resulta outro proveito senão muitos furtos que fazem e muitas feitiçarias que fingem saber…”. Na sequência, D. João III determinou que “… não entrem ciganos em meus reinos…”. E, em 1526, o mesmo rei faria a primeira lei de expulsão, “… os ciganos não entrem no reino e saiam os que nele estiverem”.

Ao longo de 300 anos, seguiram-se novas leis e consequentes julgamentos. Deles resultaram as condenações às galés e ao exílio. Por esta via seguiram os ciganos portugueses para África e para o Brasil. E, no entanto, a sua presença em Portugal continuou a ser um facto, sendo certo que a perseguição fechou o grupo, cristalizando leis e hábitos.

Com a monarquia liberal, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade também se aplicaram aos ciganos. Por isso, em 1822 foi concedida a cidadania a todos os nascidos em Portugal; em 1852 a lei determinou que ninguém poderia ser condenado apenas por ser cigano. Estas medidas beneficiaram, obviamente, o grupo perseguido. No entanto, não foram suficientes para que ele fosse plenamente reconhecido.

Também os ideais republicanos iriam favorecer este povo. Se, no entanto, em 1911 se lhe reconhecia “… a igualdade, do ponto de vista jurídico”, a lei determinava  “… uma severa vigilância sobre os ciganos… cuja identidade é sempre duvidosa…” (Decreto 6950, de 26/6/1920, arts 182 a 185). Estes artigos viriam a ser revogados a 20/5/1980, pela Resolução 179/80 do Conselho da Revolução, por serem inconstitucionais. Mas os ciganos continuavam a ser olhados como censuráveis e colocados sob suspeita, o que se confirma em diversas Posturas Municipais. Apesar de consagrada a inviolabilidade de domicílio, a lei continuou a determinar uma “especial vigilância relativamente aos nómadas”. E, no entanto, a actual Constituição da República Portuguesa consagra o direito à “igualdade” (artigo 13).

A partir de 1960 verificou-se uma significativa alteração no quotidiano tradicional deste povo que, como tantos portugueses, em grande número deixou o mundo rural atraído pelo meio urbano. Estabelecidos em bairros de barracas, tal como muitas outras famílias que comungavam a mesma esperança de melhores condições de vida, muitos ciganos se foram progressivamente sedentarizando. Mas, vivendo nestas franjas sociais, continuam a ser um grupo estigmatizado, que mantém as tradicionais características materiais: dificuldades económicas, de integração social, habitação degradada, insucesso escolar ou ausência de escolaridade e impreparação profissional. O cigano continua a ser agente passivo de um processo que não foi acompanhado convenientemente, tanto a nível económico como social, cultural e até religioso.

Por outro lado, a sedentarização, que potenciou durante anos a venda ambulante, não evita a sua extinção. Todavia, essa actividade mantém-se, na comunidade cigana, como “modelo” ainda pensado como profissão ideal para o adulto. Tal determina que o jovem, quase sempre desinteressado da escola a partir da adolescência, não se prepare profissionalmente para outra ocupação. Actualmente, a grande maioria não ultrapassa o 6º. ano de escolaridade.

De entre as marcas tradicionais da cultura cigana deve evidenciar-se a sua profunda religiosidade. Um importante elemento, desde cedo transmitido às crianças, é o temor de Deus. Os ciganos portugueses mantêm, relativamente ao sobrenatural, a marca tradicional: Deus é pensado como um Cigano na máxima perfeição, poderoso e triunfante, protector da Família, generoso como um Pai; Deus humano e próximo, que ama e oferece a natureza.  Alguém a quem se recorre,  Alguém com quem se dialoga.

Associado a essa religiosidade, o culto e respeito pelos mortos é igualmente apreendido pelas crianças. Aos mortos, oferece-se o pranto; rende-se homenagem; colocam-se problemas; constroem-se monumentos funerários e permanece-se longas horas com eles no cemitério.

E como responde a comunidade católica aos problemas destes portugueses? Localmente, sobretudo fora dos grandes centros urbanos, algumas crianças e adolescentes frequentam as catequeses paroquiais e alguns jovens integram grupos juvenis. Todavia, tal constitui excepção. Para esta realidade muito contribuiu a adesão quase total da população cigana à Igreja Evangélica “Cigana”, que considera “sua” e que surgiu em Portugal nos anos setenta. Com Pastores ciganos, este modo de se relacionar com o “divino” responde às respectivas sensibilidades. Se, na comunidade católica, o cigano se dilui no meio do grande grupo e é chamado a uma forma de expressão que não compreende, na “sua” Igreja ele manifesta-se tal como é, sem receio de sair dos cânones que o obrigam a um comportamento estático. Nesta forma de adesão ao espiritual se inserem quase todas as famílias e, com elas, crianças e jovens.

Este quadro define a maior parte da população cigana portuguesa. No entanto, importa salientar a existência de duas minorias dentro desta comunidade, embora nas antípodas uma da outra:

– A dos (poucos) elementos que fizeram um percurso escolar normal, tendo obtido certificação profissional ou mesmo licenciaturas.

– Os grupos nómadas, que caminham sem um mínimo de condições. Deslocam-se em carroças puxadas por cavalos ou mulas, dormem em terrenos particulares ou públicos, mas as determinações concelhias ainda em vigor não lhes permitem manter-se nos municípios para lá de determinado número de horas/dias.

Esta é a realidade trágica de famílias a quem permanentemente se nega, ainda que por omissão, o direito à habitação, à escola, à dignidade…