Filme: Johnny Guitar

“Johnny Guitar” é um filme de Nicholas Ray

“Johnny Guitar” é um filme de Nicholas Ray

O célebre clássico de Nicholas Ray está de volta aos cinemas. E continua tão estranho, maravilhoso e desconcertante como sempre. Porquê?
À partida, este filme de “pequena produção e ainda mais pequenos dinheiros”, seria só mais um western. Uma coboiada à antiga, estão a ver o género. Um oeste sempre selvagem, a última fronteira quase ali. Em salões enfumarados, pistoleiros, bailarinas e outros agentes da ordem espontânea, entretêm a morte enquanto a civilização não chega com os primeiros carris. Os dias medidos pelo compasso de velhos relógios de pêndulo, a passada pelo chocalho das esporas. Bebe-se whisky, maltrata-se o pianista, é-se vagamente tridimensional. Os maus usam chapeús pretos, os bons estão prestes a ter de interromper a reforma para uma última cavalgada, o miúdo está impaciente por mostrar o seu valor, ainda magoa alguém. Para a conta de meses, basta uma única moeda.
E Johnny Guitar, que tem tudo isto e uns cobres, por algum motivo é muito mais do que isto. Claro, o nosso homem é um pistoleiro na reserva que vem socorrer a antiga amante. Claro, ainda se amam perdidamente. Claro, o comboio está quase a chegar. E claro, ela tem uma inimiga mortal e ele uma bala com o seu nome em quase todos os seis-tiros da região. Felizmente, não se vá dar o caso, trouxe uma guitarra.
E então, what’s the deal (“qual é o negócio”, na legenda portuguesa), perguntam. O deal é que apesar de ter cenário de western, história de western, até título de western, como nota um crítico, é um labirinto, romântico e emocional, que (apropriadamente) dinamita o género.
Dizemos: “não ganhou uma ruga”. Não que se “mantenha atual”, coisa que nunca foi. É só que as suas escolhas particulares sobre como ser estranho nunca tiveram o azar de deixar geração. Não calhou que a sua originalidade, como tende a acontecer aos inovadores formais, fosse normalizada e cooptada (no sentido em que o foi, por exemplo, o gag de Charlot). Permaneceu estranho e único.
O próprio realizador diria que o sucesso inesperado era afinal compreensível: «foi a primeira vez, num western, que as mulheres foram simultaneamente as principais protagonistas e as principais antagonistas. Opunha-se ao estilo do “cinema negro” que predominava nessa época; é um filme em que a cor é valorizada, devido a uma hábil estrutura arquitetónica; foi o primeiro filme a utilizar a cor em toda a sua potencialidade».
Além disto, que é muito, quando tememos que o filme descambe, que lá venha o melodrama de quinta categoria, reparamos que o que nos incomoda é outra coisa: a suspeita receosa de que alguém fez um filme que é mesmo um drama romântico. Já foi dito muitas vezes, mas vale a pena repetir: os diálogo entre Johnny e Vienna – que em tempos até foi posto em livro e vendido em separado – , que maravilha de tensão e ritmo, ambiguidade e outra coisa que talvez seja graça.
Bénard da Costa, o maior cinéfilo que já tivemos a honra de desmerecer, mesmo se “só viu o Johnny Guitar 68 vezes, entre 1957 e 1988”, acabava assim uma crítica de antologia sobre esse que era o filme da sua vida: «Quando o bando de Emma entra pelo saloon de Vienna, para a prender, os misteriosos croupiers param as roletas. Enfrentando Emma com o seu terrível olhar, Vienna, sem desviar os olhos dela, dá uma seca ordem: “Keep the wheel spinning, Ed. I like to hear it spin. [Mantém a roleta a rodar, Ed. Gosto de ouvi-la a rodar]”. No fim de cada visão de Johnny Guitar, só me apetece dizer aos projecionistas: “Keep the film spinning, Ed. I like to see it spin.” Tanto, tanto.»
António Ramos Pereira