Globalizar a Solidariedade

Direitos Humanos O ano de 2004 terminou com uma das maiores tragédias, provocadas por catástrofes naturais, das últimas décadas. O terramoto ao largo da ilha de Sumatra e o maremoto que lhe sucedeu, com efeitos um pouco por todo o Oceano Índico, ficará perpetuado na história como um dos mais terríveis acontecimentos da memória recente.

Quando me sento para escrever esta crónica, os dados oficiais indicam 124 mil mortos e a ONU estima que as vítimas mortais possam ascender a mais de 150 mil, ao que convém acrescentar mais de meio milhão de feridos e talvez dois milhões de pessoas que sofreram, directa ou indirectamente os efeitos das ondas gigantes – pessoas que perderam as suas casas, os seus haveres, as suas fontes de subsistência…

Era a manhã do dia 26 de Dezembro. Apenas um dia após o Natal. Domingo, em Portugal ainda se acordava numa letargia característica do período pós-natalício. Nos países anglo-saxónicos começavam as comemorações do “Boxing Day”, o dia em que se oferece a prendinha de Natal ao carteiro, ao padeiro, ao rapaz dos jornais ou do leite. Tudo parecia feliz na “aldeia global” (como um dia lhe chamou McLuhan) quando as rádios, as televisões e os jornais on-line, começaram a transmitir as notícias vindas do Oceano Índico. Em Portugal a notícia estoirou como uma bomba. Algumas das regiões atingidas eram as turísticas praias da Tailândia e as paradisíacas ilhas Maldivas, para onde centenas de portugueses se tinham deslocado em busca de alguns dias de descanso.

As imagens de angústia e horror entraram pelas nossas casas dentro através das televisões. Gradualmente foi-se tendo consciência das dimensões da catástrofe. As vítimas eram aos milhares!

Então o mundo, mesmo antes do apelo à solidariedade feito por Yvette Stevens, directora da ONU para as questões humanitárias, começou a moblizar-se para uma ajuda à escala global, sem precedentes. Já qualificada como a maior operação humanitária de sempre – do apoio médico e alimentar aos fundos financeiros que já foram criados – é sintomático que a mobilização se tivesse iniciado, em primeiro lugar, ao nível da sociedade civil. Primeiro foram as Organizações Não-Governamentais, os organismos religiosos e de Ajuda Humanitária. Só depois os militares e os governos ocidentais. Até que, um pouco a medo, a “nação mais poderosa” do mundo finalmente reagiu, libertando alguns (poucos) milhões de dólares. (Que isto “em tempo de guerras preventivas” não dá para ser muito solidário sob pena de prejudicar o apoio financeiro à indústria bélico-militar!).

Na Índia, aquando da realização do Fórum Social Mundial 2004, em Mumbay, Bernard Cassen, uma das vozes de referência do jornal francês “Le Monde Diplomatique”gritava para o mundo “Esta é a alterglobalização que se mundializa”. Na verdade, o que se pedia – sobretudo ao “grandes” deste mundo – é que a globalização do neoliberalismo económico desse lugar a uma outra globalização: a da solidariedade, da tolerância, da complementaridade…

“Tsunami” – uma palavra japonesa que quer dizer “onda no porto” ficará, inexoravelmente, ligada a uma das maiores ondas de solidariedade a que o mundo já assistiu. Catapultada por um dos acontecimentos mais trágicos de que há memória, a solidariedade, efectivamente, globalizou-se. Resta agora esperar que em 2005, sem que sejam necessários mais acontecimentos nefastos, o mundo olhe para outras catástrofes permanentes: a Dívida Externa dos países pobres, a violência física e sexual sobre crianças e mulheres, o trabalho escravo, a intolerância religiosa (ou a do mundo ateu), a depredação dos recursos naturais… e se resolva finalmente, empreender a globalização da Justiça e a Paz.