A assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos, a decorrer, a qual reflete os “Desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização”, culmina um caminho de extraordinária auscultação de uma multiplicidade de vozes e parte de uma profunda reflexão teológica prévia, cuja síntese encontramos no pequeno livro de Walter Kasper “o Evangelho da Família”.
Não nos admira que uma parte da comunicação social, sempre em mórbida busca de sensação, emita opiniões a torto e a direito sobre o que sabe e o que não sabe, alvitrando objetivos e conclusões deste fórum ao sabor do desnorte dos nossos dias. Mais admira é que algumas franjas eclesiais procurem também perscrutar neste encontro simplesmente palavras bonitas que encham os ouvidos e encantem os sedentos do relativismo total.
O assunto é reconhecidamente complexo, para se esperarem ideias e “receitas” epidérmicas. O Papa Francisco situa o cerne da questão: “A família atravessa uma crise cultural profunda, como todas as comunidades e vínculos sociais. Nela, a fragilidade dos vínculos reveste-se de especial gravidade, porque se trata da célula básica da sociedade” – EG 66.
O problema é uma crise antropológica densa do mundo em que estamos. São muitas vezes as condições laborais e económicas que afetam o convívio e a coesão da família. Mas é sobretudo uma instalada e visceral mentalidade individualista, um hábito arreigado e desenfreado de consumismo, que afastam da cultura da família. O mercantilismo que se embrenhou na existência humana domina a pessoa e torna-a escrava dos jogos do mercado, do poder, do ter, do prazer. E daí resultam novos conceitos e modelos de “matrimónio” e “família” distintos da proposta da Igreja.
Como diz Walter Kasper: “A situação da Igreja de hoje não é uma situação inédita. Ou antes, a Igreja dos primeiros séculos também se confrontava com conceitos e modelos de matrimónio e de família muito diferentes daquilo que Jesus pregava, que era novíssimo, quer para os Judeus quer para os Gregos e Romanos”.
Assim, o caminho da Igreja, hoje, será o regresso radical à fonte da qual brotou a doutrina. Não poderá ser uma adaptação liberal à situação estabelecida. Não será tão pouco um reforço da doutrina. Consciente de que o Evangelho crido e vivido na Igreja não é “uma lagoa estagnada”, não é um código jurídico, mas uma torrente inicial na qual confluiu “a experiência da fé do Povo de Deus de todos os séculos”, submissa ao Espírito, sem o Qual o Evangelho é lei que mata, o Sínodo há de descobrir esse Evangelho, neste momento crítico, como “uma alegre notícia, luz e força da vida da família”.
O texto de Walter Kasper foi preparado para dizer aos Cardeais no Consistório extraordinário de 20 e 21 de fevereiro, como base teológica para a preparação do Sínodo que está a decorrer. Vale a pena ler o texto. Não resisto a citar um comentário do Papa: “Ontem, antes de dormir…, li e reli o trabalho do Cardeal Kasper e queria agradecer-lhe, porque encontrei uma profunda teologia, também um pensamento sereno em teologia. Dá gosto ler teologia serena. E encontrei ali o que santo Inácio nos dizia, esse sensus ecclesiae, o amor à Mãe Igreja […]. Isso fez-me tanto bem que me veio uma ideia; e, desculpe Eminência, se o faço corar, mas a ideia é: isto é o que se chama «fazer teologia de joelhos». Obrigado. Obrigado”.
Obrigado, Cardeal Kasper! Obrigado, Papa Francisco, por esta humilde frontalidade e regresso às fontes!