Aveiro foi uma cidade muralhada, mas pouco resta da muralha mandada construir pelo infante D. Pedro, filho do rei D. João I. Neste texto, Mons. João Gonçalves Gaspar, padre e membro da Academia Portuguesa de História, propõe que se ponha a descoberto um trecho da muralha secular e se realize a proposta do artista José de Pinho.
A partir de 1418, a fisionomia do nosso antigo burgo começou a mudar, porque o infante D. Pedro, filho de el-rei D. João I e senhor de Aveiro, tomou a iniciativa de mandar cingir a sua parte principal por uma muralha, além de incentivar a fundação do convento dominicano. Era dotada de alguns torreões, de diversos postigos e de nove portas: – a da Vila (da Cidade, depois de 1759), a do Sol, a do Campo, a do Côjo, a da Ribeira, a do Cais (ou do Norte), a do Albói, a de Rabães e a de Vagos. Com o andar dos tempos, apesar de vários reparos durante a primeira metade do século XVIII, a muralha foi-se arruinando sucessivamente nalgumas partes, pela frágil solidez dos alicerces e pelo abandono a que foi votada. Ademais, por volta de 1806-1808, não só a pedra caída das ruínas mas também muita pedra dos troços existentes serviram para a construção dos paredões da nova barra marítima.
Em 1852, junto da porta da Ribeira, ainda em pé no princípio da rua da Costeira, o presidente da Câmara Municipal, dr. Bento José Rodrigues Xavier de Magalhães, no discurso que preparou para a receção à rainha D. Maria II, recordou o sentido histórico da muralha e a herança que ela transmitia, dizendo (vd. Rangel de Quadros, Aveiro – Apontamentos Históricos, vol. II, pg. 37): – «Estas pedras, Senhora, que a mão pesada dos séculos já denegriu e carcomeu, são quase tudo o que resta dos nossos antigos muros. Guardamo-las com desvelo, porque vão levando às gerações a memória gloriosa do homem grande, que as ergueu aí.»
Contudo, foi e é de lamentar que, em 02 de abril de 1856, o próprio Governo da Monarquia ordenasse a demolição de vários restos; muita da pedra, retirada da porta da Ribeira e das suas imediações, foi aplicada na construção do velho Liceu (hoje Escola Secundária de Homem Christo). Novos edifícios urbanos e várias modificações de outros alteraram ou fizeram desaparecer os vestígios da muralha. Todavia, até 1959, ainda se via um dos cunhais da porta do Sol, enegrecido pela antiguidade, que terminava por uma pequena saliência; era aí que estava exposta a imagem de Santa Maria. Neste mesmo ano, abriu-se nesse espaço a praça do Milenário; para isso, tiveram de se demolir as casas com frente para a rua de Santa Joana e para a rua do Rato, sendo encontrados nas suas traseiras alguns vestígios em pedra.
José de Pinho, conhecido artista aveirense, idealizou então um desenho que, ao ser concretizado, seria um padrão a recordar a muralha. «Há que recusar o adeus voluntário do que hoje é inútil, em preito aos seus méritos de outrora» – disse então o autor. Foi sugestão sua que o tal padrão deveria colocar-se num sítio pelo qual passava a muralha, sem se afastar da referida porta do Sol. Por isso é que José de Pinho, ao ter a ideia de desenhar um nicho gótico no seu traçado, era para nele se entronizar a referida escultura que, entretanto, foi levada pelos proprietários da casa onde a dita ombreira estava inserida.
O dr. David Christo, no semanário “Litoral”, de 07 de fevereiro de 1959, escreveu: – «Registamos gostosamente a curiosa sugestão, que inteiramente aplaudimos e endossamos a quem possa torná-la realidade. E permitimo-nos acrescentar que sabemos existir na Barra, a bom recato, a pedra com o brasão que sobrepujou a porta do Sol. Essa, em vez das armas da cidade, encimaria magnificamente a coluna que se vê no desenho. Uma sucinta legenda evocativa e explicativa completaria a excelente memória.»
Também lamento que, em novembro de 1983, com a autorização dos responsáveis autárquicos, fosse destruído um troço significativo da muralha, que, na freguesia da Glória, se mantinha num quintal do ângulo da rua de Homem Christo, Filho, com a travessa das Beatas, e perto das traseiras da sede do Governo Civil. Desenvolvia-se aí a porta de Rabães e o torreão imponente que lhe ficava contíguo. Com um simples arranjo de limpeza e de manutenção, hoje poderia ter-se uma expressiva recordação histórica da época quatrocentista. Mas essa obra nem foi por diante e nem sequer foi programada, porque, mantendo-se de pé, estorvava um projeto para a construção de um edifício habitacional. Foram baldados os esforços da Associação para o Estudo e Defesa do Património Natural e Cultural da Região de Aveiro (ADERAV), assim como de nada valeu a luta pela sua conservação da parte de alguns aveirenses, amantes da história da sua terra.
Finalmente, pode acrescentar-se que os respetivos Serviços da Câmara Municipal de Aveiro, no projeto para a pérgula limitativa do adro da Sé, desenhado e executado à volta de 1989 após a demolição das casas aí existentes, que não tinham valor estimativo, histórico ou artístico, contemplou a colocação deste padrão no extremo da colunata que, para essa concretização, termina em semicírculo… a não ser que aí mesmo se levantasse uma estátua em honra de Santa Joana, para a qual se viria a escolher um local com outra dignidade.
Pessoalmente, sem menosprezar o recente projeto idealizado pelo arq. Siza Vieira, volto a lembrar a minha opinião de 1989: – a) que se ponha a descoberto qualquer trecho dos alicerces da muralha entre as colunas da dita pérgula, sendo defendido com forte e espesso vidro acrílico e sendo iluminado indiretamente; b) – e que se levante no termo da mesma colunata o padrão desenhado por José de Pinho, o qual não deve ultrapassar a altura da colunata.
João Gaspar