Santa Joana Princesa: a Padroeira ontem, hoje e amanhã

NUNO GONÇALO DA PAULA Irmão de Santa Joana

NUNO GONÇALO DA PAULA
Irmão de Santa Joana

Na feliz comemoração dos cinquenta anos do breve pontifício que declarou Santa Joana Princesa como Padroeira da Cidade e da Diocese de Aveiro, datado de 5 de Janeiro de 1965, sendo papa o beato Paulo VI, e tornado público a 9 de Abril do mesmo ano, ocorreram-me três linhas de pensamento que julguei oportunas partilhar e porventura servirem para pontos de reflexão e discussão.

 

A Padroeira ontem:
personalidade ímpar
Na época que marca a transição na História de Portugal da Idade Média para a Idade Moderna, a Infanta Dona Joana é unanimemente reconhecida pela cronística como uma personalidade de carácter vincado e de raras qualidades humanas e espirituais. Certamente que a perda da mãe em tenra idade, o natural ascendente que exerceria sobre o príncipe herdeiro seu irmão e os balanços políticos e palacianos da época, moldaram a sua vida para a doação à religião. Não esqueçamos o quadro político e social em que a Infanta nasceu e cresceu: seu pai será o último rei de características cruzadísticas e cavaleirescas, aos quais não eram indiferentes as influências exercidas pela nobreza portuguesa mais poderosa. Por seu lado, seu irmão, de forte personalidade e traço político sagaz (e sanguinolento) e de visões ambiciosas, preferia as alianças com os extractos intermédios da população, os caminhos do mar e de outros meridianos como alicerces para a sua política régia. Estas duas visões – medieval e moderna – consequentes mas, de certa forma, divergentes, a Infanta anteviu e mediu. No seu íntimo, entendeu que todo o jogo político era vão: a roda da fortuna do mando e dos poderosos a todos contempla, a seu tempo e a seu modo. Não fugiu, porém, Dona Joana das suas responsabilidades políticas: foi regente do reino e já em Aveiro predispôs-se a casar, por imperativo dos interesses do reino e de seu irmão, seu senhor e rei. Cumpridas com zelo as responsabilidades, assegurada, por certo tempo, a permissão para entrar em religião, a ela se devotou, em estado consentâneo com o de senhora da sua condição. Mas, no seu interior e nas suas atitudes e afazeres, foi uma das demais e humilíssimas noviças do Mosteiro do Santo Nome de Jesus de Aveiro, cuja primeira pedra D. Afonso V colocara, como em premonição do que aí deixaria, de mais valioso e de verdadeiramente seu.

 

A Padroeira hoje:
exemplo e desafio
É porventura complexo transferir para o plano dos dias actuais uma figura que partiu deste mundo há mais de 500 anos. Que nos dirá uma mulher escrupulosa nos seus deveres religiosos, intransigente em fazer valer a sua decisão – na consciência que era cumprir um desejo do Alto e não uma vaidade pessoal – e de inquebrantável prudência e sentido de sofrimento acolhido, porque associado aos sofrimentos de Cristo, cuja coroa de espinhos escolheu, em vez da tiara de ouro e pedrarias? Santa Joana não precisa hoje dos nossos louvores, ou incensos. Somos nós que precisamos dos santos. Estes estão já na comunhão com Deus e de pouco lhes valerá o que tenhamos a oferecer-lhe. A sua missão é serem sinal e chamada ao Caminho. Pessoalmente, vejo, por vezes, nas nossas mais novas raparigas, pequenas Princezinhas Joanas: tudo querem, tudo têm, porque a tudo têm direito, todas as demais têm. Dona Joana foi princesa, é certo, mas na grandeza dos seus propósitos: os seus eram de servir a Deus, e fê-los vingar com sacrifício, abnegação e lágrimas. Eis Dona Joana como exemplo para estas Princezinhas: aspirar a mais largos horizontes, no estudo, nas relações, na linha da vida, se para tanto, seja contra tudo e contra todos, como ela, mas na convicção de que os sonhos são legítimos e a vida exemplo concreto de consciência tranquila e equilibrada. E a divergir das demais, que seja na grandeza interior e no empenhamento para as coisas do largo. A Infanta escolheu Aveiro para sua terra. Não lhe faltaram convites para outras localidades, mais dignas com a sua posição, mais consentâneas em conforto e requinte com o seu estado. Veio para Aveiro e veio para ficar. Quando saiu, fê-lo sempre com os olhos postos na sua Lisboa, a pequena, em tempo de pestes. Levantada a epidemia, à sua vila regressava. À hora da morte, perdoou a Infanta todas as dívidas, ordenou que a absolvessem de todas as culpas, a quem porventura tivesse ofendido. Ela, que em certo momento de navegação de uma nau com destino ao Porto, em tempo de carecia de cereais, fez valer a sua real condição; e a nau aportou em Aveiro, e Aveiro matou a fome. 500 anos depois, a Infanta terá a dizer aos aveirenses, ela que o foi por opção, que não são megalomanias, projectos copiados e delapidação da nossa identidade – sendo um nos demais – que nos afirmaremos nos diversos planos da vida colectiva. Será na excelência e diferença que Aveiro poderá projectar-se. Oxalá a Padroeira inspire quem responsabilidades maiores tem, porque a responsabilidade comum todos e cada um de nós a tem igualmente, no que diz, representa e faz por Aveiro.

 
A Padroeira:
e amanhã?
O grande problema que as figuras históricas constituem será, porventura, serem peças de museu, sempre disponíveis para datas redondas, enquadramentos políticos ou ideológicos. Melhor ou menos correcta interpretação das suas vidas é o pior que o presente e o futuro poderão fazer dos que nos antecederam. A justiça caberá sempre em tentar olhar a figura com os olhos do tempo, e assim entendermos o por quê desta ou daquela atitude. O grande problema, não dos santos, mas nosso, será pensarmos que a santidade não é para o comum, mas apenas para grandes rasgos de vida, quando assim não é, mas na fidelidade das pequenas coisas, no dia-a-dia e na vida de cada um de nós. E Santa Joana? A sua vida está aí: disponível para ser lida e compreendida. A tarefa do futuro poderá ser ver em Santa Joana um modelo de cristã: consciente do projecto de Deus para si, actuante no seu espaço e com os seus, estudante da Palavra de Deus, assídua aos sacramentos. Poderá ser ver em Santa Joana um modelo de mulher: que fez uma opção clara, lutou por ela, fazendo da firmeza do seu carácter o maior instrumento ante o poder. Não é aqui momento nem espaço para que cada entidade ou cristão tome a sua parte no quinhão do seu culto e difusão. A um irmão de Santa Joana, por exemplo, caberá ver, nas pequenas coisas do quotidiano, a lição de vida que ela terá para me dar, assim eu conheça o que fez e o que teria feito em meu lugar.
Eis as linhas que me cintilaram no espírito sobre Santa Joana nesta hora, e queira Deus que um dia ela assim possa ser liturgicamente Santa com toda a propriedade.