Cristo foicemartelado

O mundo surpreendeu-se há dias, na visita do Papa à Bolívia, quando o presidente deste país ofereceu ao Santo Padre um Cristo como que crucificado, mas sobre uma foice e um martelo, pelo que seria mais próprio dizer não “crucificado”, mas “foicemartelado”. Eu gostei! O Papa também, como fez referência o Correio do Vouga de 15 de julho. O Papa levou-o para Roma. Deixou a condecoração a Nossa Senhora, não para se ver livre dela, mas para que a condecoração representasse a homenagem ao povo boliviano. Um gesto de suma delicadeza e de respeito.
Mas, no meio de opiniões, e opinião cada um tem a que quer, vi, apenado, as reações de raiva, de escândalo, de ataques ao Papa, chamando-o comunista, ou ao presidente, chamando-o blasfemo e herege, quando não de outros nomes bem feios, vindos da parte de movimentos cristãos, de gente da Igreja, de pessoas que enchem o Facebook com imagens de Cristo e de Maria, com muita piedade, mas cujos comentários manifestam que essa devoção, boa em si, não passa de hipocrisia, porque não sabem o valor da delicadeza, da tolerância, do respeito pelas diferenças, inclusive ideológicas e políticas, tentando prevalecer a ideia, medieval, de que Deus só fala através da Igreja e que, fora dela, todos se condenam. Hitler assumiu essa mesma ideia, substituindo-a pela do povo ariano, e o mesmo faz hoje o estado islâmico, e o resultado são milhões de mortes e sofrimento sem fim.
Muitas vezes, essa dor, fruto da intolerância, fez parte da história negra da Igreja, da qual, até hoje, os papas pedem perdão ao mundo. O comunismo é mal enquanto nega a Deus na base da sua ideologia. Mas eu que visito a Polónia todos os anos vejo a nostalgia que muitos sentem da época comunista, bastante liberal para os polacos, na qual a educação era gratuita e exemplar, a medicina também e as pessoas tinham meios básicos de vida… Hoje, a capitalismo criou ali uma onda de pobreza, de busca desenfreada do dinheiro, de consumismo sem equilíbrio, de novos ricos presunçosos e de novos pobres miseráveis. Prostituição em cada esquina e uma avalanche de pessoas burladas até nas viagens pela Europa, em condições péssimas, pois a ânsia de sair além fronteiras era algo que os entusiasmava, visto ser antes algo bem controlado.
A Igreja polaca corre ambiciosa atrás de bens e dinheiros, de modo escandaloso para os crentes, que cada vez são menos. Se um padre ou um teólogo defende os direitos dos pobres nessa linha passa a ser rotulado pelos ditos fiéis da Igreja como comunista, herege, ou como estando ligado à teologia da libertação.
Que o comunismo fez milhões de vítimas, isto é um facto e dele falou Maria em Fátima. Que o capitalismo continua fazendo milhões de vítimas e oprimidos, isto vê-se a cada dia… Nem uma coisa, nem outra é boa, quando falta Deus e o respeito pelos homens… E o Papa diz isto continuamente para os que têm ouvidos afinados para ouvir e aprender.
O presente do presidente boliviano é uma peça desenhada por um sacerdote, que o Papa homenageou. Podemos ver nele a cruz de Cristo, que morre sobre uma foice e um martelo, como poderia estar sobre uma nota de quinhentos euros, para nos dizer que a sua cruz continua a existir na vida de muita gente. Pode não ser o instrumento romano de tortura e morte, mas o moderno do sexo, da seringa da droga, do dinheiro, da arma que mata, do canhão, da granada, das minas, das bombas, do cogumelo atómico. Ou a foice e o martelo. Valem como mensagem. E arte é para isso mesmo. Por isso, gostei. Mas por causa das reações de muitos católicos ditos “sérios e fiéis”, lembrei-me de um ensinamento-chave de D. José Rivera, meu diretor espiritual em Toledo, hoje em processo de beatificação em Roma. Ele dizia que a nossa união com Cristo deveria tomar de tal modo posse do nosso ser que já não precisássemos de parar para pensar em assumir as atitudes de Cristo durante a vida. A nossa união com Ele deveria envolver-nos de tal modo que nossas reações espontâneas fossem cristificadas, totalmente movidas pela caridade de Cristo, pelo amor de Cristo pelos outros. Reagir espontaneamente movidos pela caridade de Deus em Cristo, mesmo quando surpreendidos. Isso nos mostrou o Papa Francisco na Bolívia. Esse deveria ser o estado final da nossa trajetória na vida, de tal modo que as nossas reações básicas e instintivas, diante das surpresas da vida, fossem de acordo com Cristo e pudéssemos dizer com S. Paulo: “Já não sou eu quem vivo, mas é Cristo quem vive em mim”.

 

Vitor Espadilha