Deixar o acessório

LUÍS SANCHO Professor do Ensino Superior

LUÍS SANCHO
Professor do Ensino Superior

Considerando que a tarde começa ao meio-dia, o início da mesma era habitualmente passada a caminhar. Mesmo que interrompida por uma pausa para um almoço (ligeiro, se seguido de mais percurso) e um pouco de repouso (ligeiro também, se seguido do mesmo programa…), «a tarde» na peregrinação era contada a partir da chegada ao albergue.
Talvez o pior fosse a necessidade de tratar das abluções antes do descanso. Um restaurador chuveiro, lavar a roupa e pô-la a secar e, finalmente, aquilo que devia ser o início real da tarde de qualquer pessoa – a sesta! Os ritmos circadianos normais do ser humano incluem esta pausa a meio do dia e os estudos científicos têm sublinhado não só a sua relevância como também o seu efeito potenciador da eficácia no trabalho e não só.
Era um hábito enraizado nos países das nossas latitudes não há muito tempo. Recordo-me que os meus dois avôs faziam a sesta antes de regressarem às suas respetivas atividades profissionais e as minhas avós procediam da mesma forma antes de retornarem à sua função de gestão do agregado familiar. No espaço de duas gerações, esse bom hábito foi praticamente suprimido ou remetido a algo que se faz nas férias, o que não deixa de ser irónico.
Como fomos completamente tomados por uma visão marxista da vida – em que a pessoa só tem valor enquanto produtor ou consumidor! – algo tão benéfico e natural como a sesta foi empurrado para fora das nossas vidas quotidianas e só agora começa a regressar. Mesmo esse regresso ocorre, não pelas razões corretas, mas antes porque esse hábito parece ter vantagens de produtividade! Mais uma vez, equaciona-se valor com preço!
Quantas vezes na nossa vida aceitamos que nos condicionem, desta ou doutra forma? Não penso esgotar os exemplos, pois certamente os amáveis leitores conseguirão pensar em várias situações, eventos ou hábitos que foram sendo perdidos – ou adquiridos – não pelo seu valor intrínseco mas pelo preço que tem para nós e para outros? Bastará olhar à volta no centro dos nossos ajuntamentos populacionais para ver – ainda em início ou meados de NOVEMBRO! – tantas decorações de Natal, quando nem sequer ao Advento chegamos. Um péssimo hábito, que vulgariza o Natal e reduz o valor (embora aumente o preço) dessa festa cristã, a que até os cristãos se rendem. Outro excelente exemplo de relevância por impacto económico, mas agora no sentido inverso (não existia mas é ativamente incentivado por razões comerciais) é a – perdoem-me a candura – estupidez do (alegado) «dia das bruxas» ou, no original anglo-saxónico, halloween. Que as crianças queiram fazer diabruras é apenas natural, benza-as Deus. O que não considero natural é que os encarregados da educação das mesmas (e somos todos nós, pois subscrevo a perspetiva que todos somos educadores com o nosso exemplo, em todas as circunstâncias, mas mais aqueles que tem as obrigações parentais e familiares) sejam coniventes com esta importação desprovida de sentido e, pior, não consigam perceber o quão instrumentalizados estão a ser, não tanto pelos seus educandos (embora as crianças sejam exímias nesse papel), mas pelo comércio que, não contente em vender velas e flores para os cemitérios, se entretém agora a escoar máscaras de “carnaval fora de época”, entre outros itens. E a bem da brevidade, deixai-me ficar por aqui!
Uma das grandes vantagens de peregrinar é – já o referi – soltarmo-nos do acessório. Se quisermos ser economicistas, é o repensar da relação entre o benefício que obtemos de algo e o custo de o transportar. Convido os queridos leitores a refletirem sobre os seus hábitos e a fazerem essa análise. Quantas coisas boas deixamos para trás e quantas coisas desnecessárias trazemos, às vezes até porque nem damos conta que as nos meteram na mochila? Claro que este convite é feito para que esse exercício seja levado a cabo não com uma visão dialética focada no valor e no preço, mas antes com à luz da visão da Igreja sobre o ser humano, que é a glória de Deus, em toda a plenitude das nossas vidas. Ou seja, com humildade, consideremos que tudo aquilo que nos aproxima de Deus é bom, pois Deus quer o nosso bem, parafraseando o Apóstolo dos Gentios na sua carta a Timóteo.