Jornal do Vaticano lembra pioneirismo do Buçaco na proteção da natureza

Escadaria da Mata do Buçaco

Escadaria da Mata do Buçaco

Excerto do texto publicado no dia 23 de julho na edição diária do “L’Osservatore Romano”, em italiano, e no dia 30 do mesmo mês na edição semanal em português.

 

Ao longo da história, horizontes e paradeiros ricos de beleza, harmonia, calma e silêncio — reminiscências de um paraíso imaginado — foram reconhecidos, defendidos e valorizados pela humanidade.
É o caso da Mata Nacional do Buçaco, floresta de beleza sem igual que se localiza na área norte da Serra do mesmo nome, na Beira Litoral, região do centro de Portugal. Trata-se de 105 hectares de montes íngremes, de afloramentos rochosos e de vales profundos e húmidos, cheio de vegetação frondosa.
Este espaço foi criado pelos frades carmelitas descalços. Em 1628, no centro do bosque, foi colocada a primeira pedra para a construção de um pequeno e humilde convento consagrado ao culto da Santa Cruz e foi erigido um muro alto que circundava toda a propriedade.
Ali se estabeleceu uma comunidade de carmelitas dedicados à vida ascética e eremítica num ambiente dominado pelo silêncio. A importância deste cenóbio e o reconhecimento explícito dos valores materiais, espirituais e culturais, vinculados a este espaço material, evidenciam-se graças a dois ‘breves pontifícios’ do século XVII. Ambos comprovam inequivocamente a preocupação «ecológica» e o valor imaterial deste espaço. Esta perceção, no mais alto nível das instâncias eclesiásticas, realça a importância da Mata do Buçaco e demonstra também, de modo evidente, como eram considerados estes lugares.
Em 1622, Gregório XV reconheceu publicamente o objetivo fundamental da Casa do Ermo do Buçaco. Em 1643, um novo ‘breve apostólico’, de Urbano VIII, provavelmente constitui um dos primeiros documentos da idade moderna que, com força de lei, protegia a natureza, num período de pós-expansão ultramarina, no qual predo-minava uma certa degradação e ineficácia das políticas.

Breves pontifícios de Gregório XV e Urbano VIII à entrada do convento, nas chamadas “Portas de Coimbra”

Breves pontifícios de Gregório XV e Urbano VIII à entrada do convento, nas chamadas “Portas de Coimbra”

Diz o breve do Papa Barberini: – «Querendo Nós quanto no Senhor podemos attender a conseruaçam, e retenção das Árvores do Convento de S. Cruz de Bussaco de Carmelitas descalços do Bispado de Coimbra e fazer especiais graças e favores ao Prior e mais Religiosos delle absolvendo só por effeito das prezentes de quaesquer Sentenças de Excomunhão &c. Prohibimos, sob penna de EXCOMUNHÃO ‘ipso facto incurrenda’, que daqui em diante nenhuã pessoa de qualquer authoridade que seja, se attreva sem licença expressa do Prior, que ao tempo for do dito Convento, a entrar na Clauzura delle para efeito de cortar árvores de qualquer casta que sejão ou fazer outro daño. Não obstante quaesquer constituições apostólicas ou do Convento e Ordem dita em contrario. Mas queremos que a cópia desta prohibição se conserve fixada nas portas do Convento ou em outro lugar patente a todos. Dado em Roma em S. Pedro debaijo do anel do pescador em 28 de março de 1643. Anno 20 de Nosso pontificado».
Por conseguinte, o documento proíbe a entrada no espaço religioso com a finalidade de causar qualquer tipo de dano naquele ambiente cheio de beleza natural. Quis o Santo Padre que o édito fosse fixado nas portas do Convento ou noutro lugar legível por todos. E assim foi. E graças a isto hoje conservamos as placas comemo-rativas de época remota com os dois breves no muro da citada Mata. Ambas são uma confirmação do interesse secular do ser humano e concretamente da Igreja, pela preservação dos valores materiais e imateriais vinculados à Natureza.
Uma recente e atenta pesquisa observa que os dois breves pontifícios de 1622 e 1643, acabados de citar, infelizmente não se encontram no Arquivo Secreto do Vaticano. Mas seria interessante verificar se deles existem vestígios em arquivos portugueses.
Deste modo, Portugal torna-se um dos países pioneiros da causa ecológica integral. Uma ecologia que, concebida de modo amplo e completo, naturalmente deve possuir uma evidente dimensão de solidariedade intergeracional. O Buçaco com a sua rica coleção de cedros, pinheiros-alvares, sequoias, acácias, tílias, palmeiras, rodo-dendros e com os enormes exemplares de «cedros do Buçaco» (Cupressus lusitanica) testemunha que a salvaguarda e a transmissão destes espaços únicos e especiais também na sua dimensão imaterial, já foram uma preocupação efetiva para os administradores eclesiás-ticos daqueles territórios no século XVII.
Por sorte, em finais do século XX e inícios do século XXI, os valores imateriais foram de novo enfatizados, graças a intervenções de diversos Organismos internacionais. Assim, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, Unesco, exalta os valores culturais e integra o aspeto imaterial e espiritual da Natureza, e a União Internacional para a Conservação da Natureza, IUCN, reconhece a aliança positiva dos valores culturais e espirituais de qualquer património natural da humanidade.

Viver num contacto permanente e equilibrado com o ecossis-tema permite a estupefação face à Criação, a descoberta através do mundo visível do espetáculo do invisível, e que se entre num diálogo silencioso e contemplativo com o Transcendente. A Mata Nacional da Serra do Buçaco, lugar mágico de enorme valor naturalístico e rico de história, arte, cultura e espiritualidade, que vale a pena visitar, é a confirmação de como um património natural, com a sua dupla dimensão, material e imaterial, é um tesouro precioso que cada geração deve transmitir às futuras gerações.

Mons. Francisco Javier Froján Mader