O grito esquecido

Querubim Silva Padre. Diretor

Querubim Silva
Padre. Diretor

 

O texto do Génesis 4,9-10 precisa de ser revisitado pela consciência decrépita desta Europa de raízes civilizacionais judaico-cristãs, completamente enclausurada na fúria do egoísmo, na prática de um hedonismo desumanizante, nos hábitos de um estilo de vida de facilidades e comodismo, de consumismo cego, mesmo em tempos de crise, que rejeita aproveitar para a conversão a uma vida sóbria e liberta, digna e não ao sabor das sensações.
“Onde está o teu irmão Abel?” – continua a clamar o Senhor aos ouvidos dos crentes e dos homens de boa vontade. Esses “Abel” que encurralamos em muros de vergonha, que acorrentamos a arame farpado, que deixamos afogar-se no Mediterrâneo, sufocar em camiões ou perecer nos porões dos barcos de tráfico de seres humanos.
Mas Deus, hoje, só tem a nossa voz. Só nós poderemos ampliar esse grito e prolongar-lhe o eco. Num Ano da Misericórdia, onde está o rosto da Misericórdia divina nas atitudes e ações dos cristãos? Que fizemos das Bem aventuranças? Como lemos na vida Mateus 25,31-45? O Evangelho é a reserva de humanidade perfeita. Temo-lo como dádiva e feliz herança dos nossos antepassados… E deixamos que morram à fome e à sede, perdidos nas vias férreas ou nas florestas, às mãos de “bárbaros” sem escrúpulos, sabendo que são nossos irmãos.
Tranquilos da vida, porventura esbanjando em nome da fé recursos materiais que solucionariam de imediato muitos destes problemas, voltamos as costas, respondendo sem pejo: “Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?”. Continuamos a viver uma “religião” apegados às tradições dos homens, esquecendo o mandamento de Deus.
Quem ousa erguer, de forma consistente, a sua voz? Bispos e Padres, Movimentos e Leigos convictos, onde estão os nossos irmãos? O seu sangue clama da terra até ao coração de Deus! Aqueles que ousaram erguer a sua voz não receberam palmas e encómios, mas vergastadas, perseguições e morte. É esta firmeza de palavra e de atitude que vivemos e anunciamos? Se assim for, será relembrado o grito original esquecido e as portas e o coração da Europa tornar-se-ão o misericordioso e acolhedor coração de Deus!