O meu brinquedo é um livro

Joana Portela Mãe e Revisora de Texto

Joana Portela
Mãe e Revisora de Texto

 

Cada palavra que leres
há-de alargar o teu mundo
acrescentando sentido
ao que sabes lá no fundo,
e aquilo que tu nomeias
passa a ter nome e lugar,
tesouro de sons soletrado
quando te pões a falar.

Cada palavra que aprendes
tem o gosto da aventura
e a magia secreta
que há no acto de leitura.
Cada palavra que escreves
É um fruto já maduro
Que cai da árvore dos sons
E tem sabor de futuro.

José Jorge Letria,
in Versos para os Pais Lerem aos Filhos em Noites de Luar

 

Auspicioso, Setembro é mês de (re)começos. De inaugurar cadernos em branco. De folhear páginas a cheirar a novo e a promessa. E as letras do alfabeto, em lápis titubeante ou dedo calejado, têm sabor de futuro, têm horizonte de porta que se abre para alargar o nosso mundo…
… um mundo onde 774 milhões de analfabetos, por não terem acesso à palavra escrita, encontram fechadas as portas de uma vida digna. Para alterar a situação, assinala-se, a 8 de Setembro, o Dia Internacional da Alfabetização/Literacia. Na União Europeia, um em cada cinco jovens de 15 anos tem dificuldades de leitura e 73 milhões de cidadãos têm níveis de literacia insuficientes para lidar com o mundo moderno. E Portugal apresenta um dos mais baixos níveis de literacia entre os países da UE (sobre isto, vale a pena ver: www.youtube.com/watch?v=tP2y0vU7EG8).
Aproveito a pertinência da data e três “inspirações” recentes para insistir num tema que, como mãe e cidadã, me interessa cada vez mais: a literacia emergente na primeira infância. É um novo conceito de literacia, entendido como o processo de aquisição e desenvolvimento gradual das competências da fala, leitura e escrita na idade pré-escolar, proporcionado por experiências, hábitos e interacções positivas com a linguagem escrita. Ora, a promoção da literacia deve ocorrer desde o primeiro ano de vida, pois começa muito antes do ensino formal, assumindo um papel primordial na prevenção de dificuldades futuras, que ocorrem com frequência durante a aquisição da linguagem escrita no decurso da escolarização.
A primeira inspiração chegou-me por via da palavra escrita. O pediatra dos meus filhos enviou-me um artigo da Sociedade Americana de Pediatria, cujo título traduzo: “Promoção da Literacia: uma componente essencial dos cuidados primários na prática pediátrica”. Resumo algumas ideias: ler regularmente com as crianças estimula padrões ideais de desenvolvimento do cérebro e fortalece o relacionamento entre pais e filhos num momento-chave do desenvolvimento infantil, o que, por sua vez, constrói linguagem, literacia e competências socioemocionais que duram a vida inteira.
Trocado para miúdos, o artigo recomenda que, como política de saúde nos cuidados primários, e especialmente nos contextos sociais mais desfavorecidos, os pediatras receitem… livros, em doses diárias: para (ouvir) ler, manusear e manter sempre ao alcance das crianças. Desde o berço, a hora do conto é vacina contra a iliteracia, vitamina ABC para o desenvolvimento cerebral e profilaxia de saúde mental. Palpita-me, porém, que os médicos portugueses continuem a prescrever, às crianças e jovens, mais suplementos cerebrais do que livros, apesar de termos entre nós o “Projecto Ler + Dá Saúde”, que visa envolver os profissionais dos centros de saúde e hospitais no aconselhamento da leitura em família. É que ler também contagia!
A segunda inspiração chegou-me por meio da palavra dita, numa revelação entristecida da minha filha (4 anos). “Mãe, porque é que nós temos de oferecer sempre livros [como prenda de anos]? Os meus amigos nunca gostam das minhas prendas, só a Lia é que gostou. As prendas que eles gostam é brinquedos, não é livros…” Surpreendida por esta confidência, perguntei-lhe: “E porque é que não gostam?” “Oh, porque eles olham, olham e não percebem as letras… não sabem o que é que lá diz… Se calhar os pais não lêem a história e eles dizem que aquilo não dá para brincar! Mãe, vá lá, podemos oferecer brinquedos como os outros?”
Foi por causa desta conversa que fui respigar, a um projecto de promoção da leitura, o título desta crónica. Acho que vou sugerir à minha filha que, da próxima vez, ofereça a sua prenda com esta legenda: O meu brinquedo é um livro! E talvez lhe junte o guia parental (disponível em PDF) “Porquê ler ao meu bebé?”, também adequado às idades seguintes. Acredito, manifestamente, que um bom livro é um presente que pode fazer a diferença no futuro, se não ficar encerrado na prateleira. A capacidade de ler – atestam os neurologistas – começa a desenvolver-se desde o primeiro ano de vida e deve ser estimulada regularmente com a ajuda da família. Estão disponíveis sugestões, conselhos e dicas no site “Ler + em Família”, um projecto do Plano Nacional de Leitura considerado, lá fora, um exemplo de boas-práticas na promoção da literacia.
Em idade pré-escolar, um livro é um brinquedo colectivo para partilhar com os pais/avós/manos que sabem ler. Não se trata de mais-um-objecto-de-plástico para entreter individualismos; é uma obra cheia de plasticidade criativa para ver/ler em família e estimular a imaginação… e também o afecto. Ler em voz alta às crianças é um gesto de amor impregnado de futuro – tão expressivo e determinante como aqueles gestos que envolvem o bebé do livro Tanto, Tanto (Ed. Gatafunho), que durante meses foi o “brinquedo” mais reclamado lá em casa: “Mãe, conta outra vez!”
A terceira inspiração chegou-me pelas tantas vozes das Palavras Andarilhas, essa contagiante FESTA da palavra lida, contada, escutada, cantada, na qual todas as gerações se imbri(n)cam nos cantos dos contos, num fabuloso encontro de narração oral e promoção da leitura, organizado em Beja. Contar é um gesto de futuro impregnado de amor.
E ler pode tornar-se um gesto pleno de cidadania. Por isso, ainda a transbordar de entusiasmo andarilho, desafio os leitores (e, sobretudo, os avós) a envolverem-se, com gratuidade, num gratificante projecto de literacia: Voluntários de Leitura (www.voluntariosdaleitura.org) – pessoas comuns que ajudam a promover o prazer de ler entre as crianças, disponibilizando algum do seu tempo para (ouvir) ler, com um pequeno grupo ou com um só aluno, em infantários, escolas ou bibliotecas. Vamos dar (a)voz aos livros?
Em Setembro, vou estrear o meu caderno novo: Leituras de Bolso para Meninos de Bibe!