O serão

LUÍS SANCHO Professor do Ensino Superior

LUÍS SANCHO
Professor do Ensino Superior

Com o calor de agosto, especialmente duro nas regiões de clima continental, é fácil perceber a letargia que toma conta do meio da tarde e o reavivar da azáfama que acompanha o declinar do sol. Correndo o risco de ser injusto, a impressão que dava era mesmo a de que, depois de passarem o dia a dormir, os espanhóis só saíam de casa àquela hora.

Para os peregrinos, o serão era semelhante. Após a caminhada, as abluções, o repouso e o calor do dia, era hora, à semelhança dos espanhóis, de sair à rua. Percorriam-se as povoações, maiores ou menores, com a curiosidade de conhecer mais, apreciar o belo – e também o horrível, por vezes – perceber a importância do Caminho para aquele sítio e a daquele sítio para o Caminho (e sobre isto escreverei posteriormente aos incansáveis leitores).
Outra dimensão importante do serão do peregrino era o convívio. Penso já ter referido a fraternidade que se estabelece entre os peregrinos a sério, mesmo quando não passa da sua fase silenciosa. Só assim se percebe a alegria que nos enche quando víamos a chegar aqueles que tínhamos visto em albergue anterior, que tínhamos saudado no percurso ou que tínhamos simplesmente visto de passagem.
Como era belo este reencontro, com amigos, conhecidos ou simples companheiros de percurso ou albergue! Quantas vezes, já depois do regresso, pensei que alegria maravilhosa era esta e porque não a sinto mais vezes? Que havia de diferente naquela gente que não há na do quotidiano?!? Mais uma vez, se calhar a falha não é tanto no que os olhos veem, mas antes nos olhos que veem…
Mas escrevia-vos sobre o serão! Valha-me a compreensão dos nossos empenhados leitores. O serão é, classicamente, uma parte agradável do dia. Findos os trabalhos do dia, as pessoas encerram o seu dia com o regresso a casa, a preparação do jantar e o período que se lhe segue. Hoje em dia, esse espaço é, arriscaria dizer, principalmente preenchido com ajuda da televisão, para mal dos espetadores. Felizmente, ainda há quem o utilize para outras atividades.
No Caminho, propiciava-se muito o regresso a essas atividades. Por exemplo, não esquecerei ter cantado com outros peregrinos e gentes da terra canções espanholas, portuguesas, francesas e sabe-se lá mais o quê, no albergue de Najera, o provar comidas diferentes ao jantar ou à ceia, as bênçãos dos peregrinos, o desfrute da festa local, as orações, as inúmeras conversas que tive, muitas das quais interessantes, sobre o Caminho, o que nos levava ali e não só…
E nós? Sabemos nós aproveitar o serão que Deus nos dá para algo que nos edifique? Aproveitamos as pessoas que Ele nos coloca à disposição para crescermos na Sua graça? Usamos o tempo, tão finito e fugaz, ou limitamo-nos a vê-lo passar? Quantas oportunidades de estar com os irmãos, com a família, com os amigos deixamos fugir, por razões válidas ou não? Saibamos usar o serão, a véspera – não é à toa que todas as festas litúrgicas começam na véspera! – para prepararmos o(s) dia(s) de amanhã que Deus nos dá.