A muralha medieva que cingia parte do burgo aveirense não cumpria objectivos defensivos conferia-lhe, antes, uma dimensão de prestígio. Assim o entenderam sucessivas gerações de aveirenses, podendo tomar-se como exemplo o Dr. Bento José Xavier de Magalhães (Presidente da Câmara), em 1852, nas palavras que proferiu na recepção à Rainha D. Maria II, ao referir que as pedras da muralha ainda existentes são guardadas “com desvelo porque vão levando às gerações a memória gloriosa do homem grande, que as ergueu”.
Dir-se-á que a manutenção da muralha seria causa inibidora do crescimento espacial da cidade. Mas, de certo, não poderá defender-se que a sua manutenção o impediria, como casos actuais de outras localidades o testemunham. Assim, as muralhas como elemento identitário da cidade viram diminuir a sua significância. Resta-nos a sua memória, pontualmente avivada por troços que obras vão devolvendo à luz. São ocasiões em que a chama se reaviva, mas disso se não tem passado: no muito, uma ou outra tentativa, tímida, de chamada de atenção… com resultados sempre inconsequentes. Desta vez vai ser diferente com a chamada de atenção que Monsenhor João Gaspar fez recentemente onde historia, com detalhe, a evolução destruidora a que a muralha foi votada? O passado aconselha a que se não alimentem demasiadas expectativas, mas tenhamos fé! Obrigado, Monsenhor João Gaspar!
Seja-me permitido acrescentar alguns dados ilustrativos do que não foi feito e faz alimentar o meu pessimismo, reportando-me apenas aos últimos 40 anos:
– Foi vista uma imagem num prédio da Rua Homem Cristo Filho (no tramo inclinado, lado par) que bem poderia ser uma das que existiam nas portas da cidade. Terá sido levada para uma quinta do Norte do país.
– Obras realizadas na referida rua (no lado ímpar) têm posto a descoberto troços de muralhas perante a indiferença do poder autárquico que tem optado por ignorar o seu dever de respeitar o passado aveirense.
– Ainda neste arruamento – sem placa toponímica, no lado do Parque – foi, vai para três anos, posta a nu uma parede da muralha e, face ao alerta da ADERAV, foram realizadas sondagens arqueológicas que revelaram a existência de uma cisterna (?). Bem, a coisa prometia: vestígios da muralha – considerou-se que dela se tratava – e uma cisterna. Exultai, ó povos! Mas eis senão quando a coisa deu em nada! Está tudo arrasado, as obras prosseguiram como se nada se tivesse encontrado, como numa cidade pobre de património marcos palpáveis da sua história fossem coisa de somenos. Isto em escassos 9 m2. Pelos vistos, a cidade com tamanha riqueza arqueológica pôde dar-se ao luxo de decretar: aterre-se! Mais: se em tão exíguo espaço de escavações o achado só poderia ser tido como promissor, não seria legítimo esperar a decisão de as prosseguir?
E, mais grave: NADA SE OUVIU DIZER SOBRE O ASSUNTO! Ninguém te defendeu, ó muralha! Ninguém te defendeu, ó cisterna! Dormi descansadamente sob o betão com que vos soterraram… (Dormi sossegados, também vós aveirenses, não vos preocupeis com a consciência de quem decidiu, porque isso é coisa que não faz parte do léxico de quem nos tem governado.)
Claro que nestas situações há que equacionar os interesses em jogo. Mas cabe a pergunta: o que foi feito para harmonizar bem público/investimento privado?
– É longo, mas não exaustivo, o rol que de seguida deixo para que cada um possa fazer o seu juízo:
• Onde param os azulejos da casa de Homem Cristo que jazem algures aguardando o destino que lhes tarda há cerca de uma trintena de anos?
• E o que é feito dos painéis de azulejo que estavam aplicados nas escadas da Casa dos Morgados da Pedricosa?
• E dos painéis que estavam em paredes da entrada da Fábrica Aleluia?
• Terá dado o bicho da madeira no mobiliário da Mercearia Albino Miranda, recolhida para, diziam, musealizar? E aos palheiros do Canal de São Roque, a esses haverá ainda algo que lhes possa valer?
• E por falar em mercearia que dizer da Veigas & Madail, Ld.ª que foi derrubada, em 2011, sem qualquer preocupação pelo seu espólio documental e azulejar? Estes patrimónios foram acautelados na Fábrica Aleluia, na Fábrica Artibus e na metalurgia Boia & Irmão?
• Há limite definido para a degradação do monumento a José Estêvão? E nada pode ser feito para que o jazigo onde repousam os seus restos possa, ao menos, ser limpo?
• Que é feito do marco lítico com um escudo gravado que se adoçava em prédio sito na desaparecida rua (ou Travessa?) do Passeio?
• Sabem-se os resultados das escavações arqueológicas feitas na envolvente à Capela de São Tomás de Aquino as quais, disse-se, fizeram suspender (até hoje!) as obras de recuperação?
• Como foi possível não preservar duas preciosas bibliotecas de aveirenses ilustres?
• Se é de louvar a recolocação das pirâmides, não pode deixar-se sem reparo o local escolhido bem como o desrespeito pela orientação das suas faces.
Para que haja a certeza: o silêncio de uns não apagará a memória de outros.
Énio Semedo
Aveiro, 5 de Outubro de 2016, dia do aniversário de Portugal, data que a governação insiste em não comemorar!