As migrações fazem parte da nossa História enquanto Humanidade. A circulação de pessoas que ao longo dos tempos, atravessaram montanhas e vales, cruzaram mares e hoje cruzam os céus deveria ser natural, um ato verdadeiro de vontade; mas sabemos que nem sempre foi nem é assim. Infelizmente as migrações forçadas ainda hoje existem e assumem causas diversas, tais como perseguições políticas, étnicas ou religiosas, fugas de guerra, pobreza e catástrofes naturais, o sonho de uma vida melhor, o desejo de levar Deus a povos remotos; diante de cada um destes cenários, a resposta mais humana e edificante é a hospitalidade e não a hostilidade que, temos vindo a assistir em crescendo, expressa em discursos de ódio que revelam a xenofobia latente e resultados eleitorais perigosos para a democracia, em todos os cantos do globo.
O acolhimento exercido por todos aqueles que, em comunidade, em família ou a título pessoal, reconhecem as necessidades de quem passa ou chega constitui-se uma referência de estabilidade, um porto de abrigo, que a qualquer ser humano, deveria ser oferecido, principalmente quando se experimenta o imperativo de recomeçar.
Ser uma pessoa em contexto de mobilidade humana, implica escolher viver e essa opção acarreta o risco da vulnerabilidade e da incompreensão, suportar medos e discriminações, isolamentos e explorações, por vezes, mais difíceis de transpor que alguns muros físicos que ao longo do tempo e do espaço foram construídos, geraram periferias existenciais e refletem desequilíbrios urbanos.
Muito possivelmente por estarmos na era da globalização e da comunicação, assistimos todos os dias a terríveis atrocidades, que nos motivam e interpelam para uma consciência, cada vez maior, de que só trabalhando de forma articulada conseguimos obter resultados mais eficientes e duradouros.
Quem está no terreno e acompanha as pessoas em situação de mobilidade chega à conclusão de que só construindo pontes entre Comunidades, Regiões e Estados é possível fazer a diferença. Ousar a memória, aprender com a história, operacionalizar o que já está consagrado em Leis, Tratados e Convenções, honrar compromissos que colocam no centro a dignidade humana, a justiça e a coesão social, reconhecer os migrantes e refugiados como co-protagonistas do desenvolvimento é o caminho do futuro que precisamos de trilhar, hoje.
Nas Nações Unidas, os Estados têm assumido compromissos importantes que revelam a disponibilidade e vontade política para articular esforços ao nível da cooperação, segurança, hospitalidade, solidariedade, e assim enfrentar os desafios de um fenómeno que é legítimo. Contudo compete também ao cidadão comum reconhecer em quem migra uma pessoa com ou sem família, portadora de direitos, de uma bagagem cultural, valores, crenças, competências; aceitar o migrante como alguém que ajuda a construir a cidade do ponto de vista económico, cultural, social, espiritual, capaz de criar e participar em espaços de diálogo onde se aprende a afirmar que somos pessoas de saberes, hábitos, valores que na promoção do encontro vão amadurecendo. Compete a todos nós aprender a olhar e aceitar com gestos concretos o migrante como detentor de uma cidadania consagrada pela Convenção Universal dos Direitos Humanos e considerá-lo um merecido habitante deste Planeta Terra, nossa Casa Comum.
Partilhamos uma casa comum em pé de desigualdade, diariamente, somos recordados que as circunstâncias e os rostos da mobilidade também são mutáveis. Por isso importa conhecer e difundir os princípios e as leis que nos protegem, promovem a vida humana e ambicionam um desenvolvimento sustentável, como os 17 objetivos da Agenda 2030, assumidos pelos Governos de todo o mundo e Organizações Não-governamentais para o Desenvolvimento – ONGD, e que precisam ser cada vez mais conhecidos e apropriados pelo cidadão comum. Só desta forma tantos milhões de pessoas podem exercer o seu direito a não emigrar e permanecer no seu país de origem em condições dignas.
Importa também conhecer e acompanhar a implementação dos Pactos Globais para Refugiados e para as Migrações Ordenadas, Seguras e Regulares, aprovados em Dezembro do ano passado em Marraquexe, uma vez que estes visam proteger de forma global todas as pessoas que ponderem a necessidade de emigrar exercendo com liberdade esse mesmo direito.
Recentemente, em Janeiro deste ano foram publicadas pela Santa Sé as orientações pastorais sobre o tráfico de seres humanos, possíveis de serem consultados no site da Secção Migrantes e Refugiados. Um crime hediondo transnacional, que por assentar na exploração, desumanizar e transformar pessoas em mercadoria, precisa de ser conhecido e combatido.
A cada crente impõe-se o imperativo ético de não explorar, não lucrar, não usar de violência para com o seu semelhante, cuidar do valor da vida humana e proteger as potenciais vítimas da sedução e do engano.
As próximas Jornadas do Migrante e do Refugiado, irão assinalar-se no dia 29 de Setembro de 2019, em todas as paróquias e comunidades cristãs espalhadas pelo mundo e terão como tema: Não se trata apenas de Migrantes.
O Santo Padre confia a toda a Igreja, a partir da Pastoral das Migrações, a sensibilização para estas questões. Não se trata apenas de migrantes. São pessoas. Em Igreja afirmamos – São irmãos, não apenas migrantes. E ainda em Igreja recordamos que foi o próprio Cristo que se quis configurar com os mais pequeninos, isto é, os mais vulneráveis da mobilidade humana, deixando-nos como mandato o Acolhimento.
Em Cristo reafirmamos que a Hospitalidade faz parte do nosso ADN e colocamos os migrantes e refugiados no coração da Igreja, isto é, Papa, bispos, sacerdotes, religiosas e religiosos, leigos e leigas, que deixando-se conduzir por Deus se constituem em comunidades de fé.
Deus visita o seu Povo nos migrantes que chegam até nós, Deus faz-se companheiro de caminho através dos missionários e agentes pastorais que vão ao encontro de outros povos, e no fim, a missão é só uma constituir uma só família humana, apesar da diversidade cultural que constitui os povos. Através da hospitalidade Deus fala ao seu povo reunido de todas partes, unidos pela fé, pela gramática do amor que gera comunhão. Deus quer através daqueles que se apresentam como forasteiros, revelar-se como bom Samaritano, que quer curar-nos do egoísmo, da indiferença, do isolamento, da xenofobia.
Se nos deixarmos conduzir por Cristo, através dos migrantes, descobriremos terrenos novos e novas atitudes a semear. Encontrar e acompanhar a via-sacra dos migrantes e refugiados, confronta-nos com as injustiças da lei ou de quem as aplica, isso interpela-nos a uma nova cultura.
O conflito, o confronto sem violência, faz parte desta exigência de crescimento, a mudança interior é inevitável. Em Deus, nasce a fraternidade, apesar das diferenças.
Para prosseguirmos juntos temos que ousar reconciliar a memória, isso implica tratar as feridas e as mágoas do passado, para construirmos um futuro juntos como uma só família humana. Este sonho de Deus, atravessa o pessoal, o comunitário, o nacional até chegar ao global.
Cresce a consciência de que só de forma interligada podemos responder aos desafios, só contando com os migrantes e refugiados como co-protagonistas do desenvolvimento teremos sociedades mais justas e fraternas. Seremos mais Igreja, na medida em que soubermos trabalhar em conjunto, e por consequência mais eficazes.
Deus através do seu filho Jesus Cristo, que se revela nos mais vulneráveis e desprotegidos, aponta-nos o caminho, da misericórdia e da justiça. Quer gerar comunidades verdadeiramente abertas que afirmam a sua identidade, sendo porta que escuta e acolhe a diversidade daqueles que procuram Cristo; derrubando os muros que nos impedem de ser Igreja Católica, mãe de todos sem fronteiras.
EUGÉNIA QUARESMA
DIRECTORA DA OBRA CATÓLICA PORTUGUESA DE MIGRAÇÕES