O paraíso aqui tão perto

 

Estranheza das ações do Espírito. No Evangelho deste domingo, temos o episódio das tentações e o início da chamada vida pública de Jesus. De alguma forma, é estranho que seja o Espírito Santo a impelir Jesus para o deserto, que é lugar de tentação. É a primeira ação do Espírito, após o batismo de Jesus.
Na Bíblia, o deserto é o lugar do melhor e do pior. É o lugar em que os israelitas se constituem como comunidade, ao saírem da escravidão do Egito, mas é também o lugar da tentação, da dificuldade que gera discórdia, da privação que gera divisão, da desorientação que impede ver Deus e faz desejar abraçar outros ídolos. O Povo, e quem quer que se aventure no deserto, sujeita-se a tomar a miragem por realidade. E a vida está cheia de miragens. Espera-se que o Espírito impele para lugares recomendáveis, não para um em que a nossa relação com Deus seja posta em causa. Ora o deserto é um destes, habitado por espíritos malignos, espaço que pode fazer brotar do coração humano o que há de pior nele.
Jesus, no deserto, conduzido pelo Espírito como outrora “uma nuvem”, símbolo do Espírito, conduziu o povo pelo deserto, está perante duas possibilidades: fazer do deserto o lugar da perdição, cedendo à tentação, ou o paraíso, o que parecerá à partida uma hipótese inviável, para não dizer tola, dada a aridez que por definição é o deserto.
Final feliz. Sem dizer como são os quarenta dias de tentação de Satanás (que é o “aquele que divide”, “que separa”, daí ser traduzido por diábolos, em grego, ou diabo, em português, que se opõe a “símbolo”, que é “o que junta”, o “que congrega”), Marcos indica-nos logo como acaba a história. Se fosse um filme, passava das cenas iniciais para o “final feliz” em poucos segundos. Pouca ação (a ação ainda está para vir, ao longo do Evangelho). Para saber como foram as tentações, temos os outros evangelhos (Lucas e Mateus), mas mesmo nesses, sabemos que as tentações (sequência de desafios-respostas) são um resumo da vida toda de Jesus por comparação com a vida do Povo de Israel no Antigo Testamento. Onde Israel falhou, Jesus não falha. Ou seja, Jesus faz do deserto o paraíso.
Se nas primeiras páginas da Bíblia o paraíso é um jardim, agora é restaurada a criação original de Deus. “Vivia com os animais selvagens”. Amizade e harmonia paradisíacas. Isaías imaginara que quando chegasse o Messias, o lobo habitaria com o cordeiro e o leopardo deitar-se-ia ao lado do cabrito, o bezerro e o leão mais a vaca e o urso pastariam juntos (Is 11,6ss), todos os animais, de repente, são vegetarianos (“herbívoros” não parece tão digno). Ora Marcos diz-nos que o Messias chegou. Os animais selvagens não lhe fazem mal. Cristo é o Novo Adão. Começou a nova criação. E os anjos servem-no, a Jesus, porque “Ele dá ordem aos seus anjos” (Salmo 91,11). Só falta o ser humano deixar de ser lobo para o seu irmão.
Nova criação. As tentações de Jesus duram 40 dias. Na Bíblia há tanta coisa que dura 40 (anos, dias, dias e noites), que devemos olhar mais para o significado do 40 do que para a sua materialidade (tipo: 39 mais 1). Aliás, já referimos que as tentações são um resumo das dificuldades com que Jesus se deparou na sua ação. Ora o 40 surge sempre associado a uma mudança. Mudança do Egito para a Terra Prometida em 40 anos. Mudança da velha para a nova criação nos 40 dias do dilúvio. Mudança de Elias da Palestina para o Horeb em 40 dias. Se há mudança, tem de ser em 40 qualquer coisa (daí a esperança da Igreja que na Quaresma mude alguma coisa na vida dos cristãos). Jesus mudou. Vai iniciar a sua pregação pública. Nada melhor do que antecedê-la por um retiro de 40 dias. Mas não foi só Jesus que mudou. Foi toda a criação. E é disso que Ele vai falar. Após o “deserto”, Jesus entra em ação porque “cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus”.
O Reino. O reino está a chegar, a nova criação, o novo mundo, e há duas coisas que podemos fazer para o acolher: arrependermo-nos e acreditar no Evangelho. Na realidade, uma leva à outra. E ficarmos apenas por uma, se é que é possível, é como optar por coxear, podendo correr.
Jesus nunca diz taxativamente em que consiste o Reino, mas contará muitas parábolas para falar de algumas das suas características, fará sinais para mostrar que já chegou, e por Ele dará a vida. Quem vive com Jesus vê nele o Reino. A boa nova do Reino, o Evangelho, é a boa nova de Jesus. Jesus é o Reino, não da maneira tão idolátrica quanto ridícula e centralista de um certo governante que dizia “L’État c’est moi”, mas porque nele vive a vontade de Deus. Jesus é o Reino porque assume a soberania de Deus. Jesus é o melhor reinado de Deus. O completo. Afinal, foi para aí que o conduziu o Espírito ao longo de toda a “vida terrena”. E o Reino está descentralizado porque tem em cada pessoa, principalmente nos mais frágeis, um representante.
Agora, como todos os anos, Jesus está a chegar. O novo Adão. O Reino e a possibilidade de uma sociedade nova. O Espírito impele-nos para Jesus/Reino, mesmo com desertos pelo meio, ou nem sequer ouvimos o Espírito? Não, a mensagem não é: “Ok. Temos tempo. Fiquem como estão, que estão bem”. Não é para isso a Quaresma.