A água

No início da Bíblia, lemos que o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Imagino um lago sereníssimo, num bosque ou floresta, com uma neblina intensa a cobri-lo. Pura paz. A paz do Deus Criador, que revolveria esta água com o gérmen de vida. Numa consonância curiosa entre Bíblia e ciência, a vida surge da água, por um processo evolutivo que chegou aos mamíferos, de onde sobressai o ser humano.
Tudo veio da água na velha criação, destruída pelo poder da água revoltosa do dilúvio e de novo recriada pela serenidade da bonança debaixo das cores de um arco-íris, símbolo de uma Aliança de Amor que Deus nunca quebrou, mas renovou quando esse mesmo Espírito cobriu com a sua sombra Maria de Nazaré e nos deu, Nela, a Arca da Nova Aliança, o Senhor da Nova criação, que é Jesus, vivo e ressuscitado. A água é, pois, casada com o Espírito, o símbolo dos renascidos na nova criação, pelo batismo, dos que vão adorar em espírito e verdade.
A água aparece muitas vezes como elemento preferencial de simbologia bíblica, seja cristalina, como a que nos oferece o bom pastor; como aquelas que o veado anseia e que banham a cidade de Deus, fertilizando as árvores que estão no seu caminho; ou aquelas que são dóceis às ordens de Moisés ou Josué, ao abrirem-se para a passagem do Povo de Deus; a água que torna a pele de Naamã como a de um bebé, depois de vencida a lepra; a água prometida à samaritana como inesgotável e viva; ou onde Jesus submergiu ao ser batizado; água que corre viva do coração do crente, como prometeu Jesus; água que um dia caiu sobre um Israel sedento, ao grito de Elias, precedida de uma nuvenzinha branca, que a espiritualidade dos místicos via ser símbolo de Maria; a água que jorrou da pedra sob a ordem de um Moisés vacilante na fé; a água que um dia passou a ser vinho nas bodas de Caná.
Água que é símbolo de vida abundante, na natureza e na história do Antigo e do Novo Testamento, do Antigo e do Novo Povo de Deus. Mas essa água, tão serena e doce, pode transformar-se em símbolo de morte quando não respeita os limites que Deus lhe impôs e se transforma em chuva assassina, por vezes petrificada em gelo ou neve; a avalanche que mata, ou o desmoronamento que sufoca; a inundação que arrasta; o tsunami que destrói.
Água agitada e revoltada, no mar de Tiberíades, quando Jesus dormia no barco. Água cujos abismos e imensidão geraram medos e mitos, desde os da Grécia até ao Adamastor dos “Lusíadas”. Água que afoga o marinheiro e o pescador. Água que nega o sustento ao recusar o peixe. Água que seca ou não cai em dias de verão prolongado e faz morrer a natureza, também pela sua ausência. Água cujo abismo profundo é tão desconhecido para o homem como o universo das galáxias. Água que a cosmogonia israelita pensava estar a suster os alicerces da terra e envolvia tudo, abrindo suas comportas para deixar cair a chuva.
Esse lado da água, digamos, mais negativo, sobretudo em São Marcos, ajuda a entender o poder de Cristo sobre as forças do mal que aflige o homem. Ele impera sobre ventos e tempestades, domina as ondas e até caminha sobre elas. Ele a oferece abundante qual bom pastor, e para o seu abismo envia os porcos, que podem ser símbolos do impuro que mata a beleza interior do homem.
Ele é o Senhor das Águas e do Cosmos. Por isso, a água bíblica, no que tem de atraente, é símbolo do amor de Deus nas nossas vidas. E, no que tem de aterrador, é símbolo da vitória de Deus, nas nossas lutas.
O desafio do Papa Francisco é de missão e de conservação, para que o mundo continue a existir como lugar onde homens e animais convivem com Deus à espera do paraíso prometido, banhado pelas águas serenas que o Espírito Santo cobre e vivifica…

Vitor Espadilha