A Grécia explicada às crianças

Joana Portela Mãe e Revisora de Texto

Joana Portela
Mãe e Revisora de Texto

De que armas disporemos, senão destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia de polis, resgatada
De um grande abuso, uma noção de casa
E de hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do qual virá a colecção dos feitos
E defeitos humanos, um início.

 

Hélia Correia, in A Terceira Miséria

 

No mês passado, um par de boas notícias reenviou-me para uma Grécia límpida e luminosa: a escritora Hélia Correia – ela que, nas palavras do seu editor, “parece muitas vezes acabada de chegar da Grécia Antiga” – foi a justa laureada do Prémio Camões 2015. Hélia e a sua Hélade, “deixando sempre / Um rasto extraordinário”, avultam a nossa literatura, cinzelam o nosso pensamento. Bastaria isto para fazer da Grécia o centro do mundo deste meu texto.
Mas dias antes, chegou outra notícia auspiciosa: o Ministério da Educação anunciava, para o próximo ano lectivo, o regresso da cultura clássica às escolas básicas e secundárias, depois de 10 anos de ostracismo. Gaudeamos igitur! Na década passada, os tecnocratas do Útil e dos choques tecnológicos exilaram do nosso ensino as línguas e culturas da Antiguidade Clássica… E, no entanto, lá estava, no exame nacional de Português, a sempre helénica e silabada voz de Sophia de Mello Breyner a surpreender os alunos. Como compreender Sophia sem conhecer os Gregos? Como compreender Portugal sem conhecer Sophia?
Sem um lastro de cultura clássica, como entender Hélia Correia ou Eugénio de Andrade ou Ricardo Reis ou Camões ou… enfim, a literatura ocidental contemporânea e as línguas europeias neolatinas? Como compreender o que é a política da polis e a democracia do demos? Ou, tão-só, como perceber a divertida paródia de José Diogo Quintela intitulada “Pedantismo à volta da Grécia” no jornal Público? Aliás, esta crónica humorística, que bate “o recorde mundial de referências clássicas em textos sobre a situação grega”, pode ser aproveitada pelos professores (ou melhor: pedagogos) como ponto de partida para um instrutivo périplo pela História e mitologia clássica.

 

 
A Grécia Antiga – não esqueçamos – é a raiz da Europa: a matriz da nossa civilização, a fonte do nosso pensamento, a (re)invenção da polis onde educamos crianças e jovens para a democracia, para serem cidadãos de mens sana in corpore sano. Como explicar a Europa de hoje aos mais novos, se pouco conhecem da Grécia de ontem? Para ajudar pais e educadores a embarcar com os miúdos numa odisseia pela geografia, História e cultura do mundo clássico – onde se fundam os pilares da nossa própria língua e identidade, mas também as colunas jónicas da ciência, da filosofia e da humanitas europeia –, aqui ficam algumas sugestões para que os mais novos possam conhecer a Grécia a uma outra luz.
Regressemos a Hélia Correia, autora de uma colecção para crianças, Mopsos, o Pequeno Grego (com selo Ler +), que as leva numa viagem pelos locais e rituais sagrados da Grécia Clássica. Estão disponíveis dois títulos: O Ouro de Delfos e A Coroa de Olímpia. Mopsos, de 8 anos, “irá assumir a função de conduzir a curiosidade de um público infantil no desvendar dos tesouros insuspeitados da cultura grega. Mas também para os adultos, o relato de Hélia reserva um fascínio particular. Sob o exterior atraente de um conto para crianças, a Autora procura abordar, de uma forma ágil, motivos que são o sustentáculo de uma cultura.” (M.F. Silva)
Nas livrarias e bibliotecas portuguesas, ao contrário do que acontece nas congéneres inglesas, por exemplo, escasseiam as obras infanto-juvenis sobre mitologia ou cultura clássica. Ainda assim, é possível encontrar alguns títulos, em linguagem descontraída e tom humorístico, sobre aspectos da civilização grega: Não Queiras Ser Um Atleta Grego (Gailivro) ou Gregos Baris (Europa-América, colecção “História Horrível”). O meu filho, que ao jantar me pede que lhe conte “mais coisas sobre os Gregos antigos”, entusiasma-se sozinho com este tipo de livros, com os quais aprende sobre a Antiguidade Clássica enquanto dá uma boa gargalhada, pois a tónica recai nas trivialidades, coisas estranhas ou desagradáveis (apresentadas de forma divertida) que habitualmente não constam dos livros de História.
Para agradar a gregos e troianos, a netos e avós, há duas notáveis excepções: A Ilíada e A Odisseia de Homero Adaptada para Jovens por Frederico Lourenço (Cotovia), “uma obra com todas as potencialidades para atrair os mais novos para o conhecimento da Antiguidade Clássica.” Embora destinadas a um público jovem, não excluem leitores de todas as idades. Sendo as primeiras obras da cultura ocidental, a Ilíada e a Odisseia são, ainda hoje, narrativas actuais “sobre as grandes questões que a vida nos coloca, sobre os seus tremendos desafios e sobre as escolhas que nos obriga a fazer.” Ou, com palavras de Hélia: “a colecção dos feitos / E defeitos humanos”.
E quem sabe se o entusiasmo pelas aventuras radicais do super-homem Ulisses, pela cilada do Cavalo de Tróia ou a tocante despedida de Heitor e Andrómaca não despertam nos jovens a vontade de participar em leituras públicas como as que ocorrem nos Açores: “um programa único no país que divulga os grandes clássicos da literatura grega aos jovens estudantes de Angra do Heroísmo, que passam os tempos livres em leituras públicas integrais destas obras.” A este propósito, vale a pena ler a reportagem “A República que mudou mentes” (disponível na net) e ouvir a voz dos jovens sobre a importância dos clássicos na sua formação humana, cívica e como instrumento de preparação para a vida.
Também o teatro, criação do espírito grego, tinha esta função pedagógica de “mudar mentes”. Em Atenas era, acima de tudo, um poderoso veículo de formação cívica e educação permanente do povo, dos 8 aos 80. Ora, explicar a Grécia às crianças e jovens passa, também, por levá-los a pisar os anfiteatros onde, hic et nunc, se continuam a representar as obras-primas, intemporais, do teatro clássico. Como compreender, no âmago, o recente NÃO dos Gregos, sem ter ouvido ressoar a voz perene e insubmissa de Antígona? Pelos palcos portugueses, vai havendo oportunidades de reviver a Grécia (a este propósito, vale a pena ler Manual de Leitura: Antígona, do Teatro Nacional de S. João, disponível na net). Além disso, todos os anos, o grupo de teatro Thíasos, de Coimbra, organiza um Festival Internacional de Teatro de Tema Clássico, com espectáculos espalhados pelo país e actividades paralelas para as escolas. Levar os miúdos ao teatro clássico é uma experiência pedagógica decerto muito mais indelével e potenciadora de um eureka do que passar os dedos pelo tablet à procura do Rei Édipo.
Porque considero fundamental resgatar a Grécia Antiga para os mais novos? Porque, no fundo, somos todos gregos, herdeiros dessa “Grécia, cuja voz ainda paira sobre as nossas mais preciosas palavras, entre as quais, quase intacta, a poesia. […] Grécia, sem a qual não teríamos aprendido a beleza.” (Hélia Correia, na entrega do Prémio Camões).
A Grécia? Um início.