Aprender até morrer, lá diz o ditado

Joana Portela Mãe e Revisora de Texto

Joana Portela
Mãe e Revisora de Texto

Primeira lição

Na escola primária
Ivo viu a uva
e aprendeu a ler.

Ao ficar rapaz
Ivo viu a Eva
e aprendeu a amar.

E sendo homem feito
Ivo viu o mundo,
seus comes e bebes.

Um dia num muro
Ivo soletrou
a lição da plebe.

E aprendeu a ver.
Ivo viu a ave?
Ivo viu o ovo?

Na nova cartilha
Ivo viu a greve
Ivo viu o povo.

Lêdo Ivo, in Estação Central

 

Não se chamam Ivo nem Eva – e nunca foram à escola primária – o homem feito e a senhora cigana que, com timidez envergonhada, me abordam no corredor do supermercado, pedindo que lhes leia e compare o preço dos comes e bebes: “Quanto custa a uva? Quanto custa o ovo? Quanto custa a ave?” (Quanto custa o analfabetismo do povo?)
Este episódio, que acontece com alguma frequência no meu quotidiano de século XXI, serve-me de ponto de partida para reflectir sobre os impactos sociais do analfabetismo e da iliteracia na vida de muitos portugueses. É um assunto que começou a suscitar a minha atenção quase por acaso, quando me cruzei na net com a intervenção de Sandra Fisher-Martins intitulada “O direito a compreender” (www.youtube.com/watch?v=d4Vl6dPmv0w).
Fiquei então a saber aquilo que ignorava: temos, em Portugal, uma taxa de analfabetismo que ainda ronda os 10% e – mais surpreendente ainda – uma iliteracia/analfabetismo funcional (incapacidade de compreender textos escritos) que afecta 50% dos portugueses. Ou seja, metade da população que aprendeu a ler e escrever não consegue, de facto, entender a informação que lê em documentos necessários para o dia-a-dia – por exemplo, um manual de instruções ou a posologia do paracetamol! Ora, estes números surpreendentes escondem consequências pessoais e sociais tão dramáticas como deitar para o lixo um cheque-cirurgia (para aquela operação há tanto esperada) por não se compreender aquilo que se lê. Depois de ouvir o caso pessoal do Sr. Domingos, referido por Sandra Martins, não podemos deixar de nos interrogar, cívica e seriamente, sobre o que terá levado a que 80% dos doentes não tivessem utilizado os cheques-cirurgia que receberam por carta. Quando as pessoas não compreendem aquilo que lêem, ficam excluídas e prejudicadas. E até mais doentes.
Afinal – pensei – também se aplica em Portugal o que aprendi ao trabalhar em Moçambique: há uma evidente correlação directa entre os níveis de alfabetização e os respectivos níveis de saúde dos indivíduos e suas famílias. É válido no meu país o que é válido para África: aumentando os níveis de literacia das pessoas, promovem-se melhores índices de saúde. Um estudo recente, divulgado no Jornal i, confirma, pela negativa, este impacto directo na nossa sociedade: “Falta de conhecimento afecta a saúde de metade dos portugueses” (http://ionline.pt/387945?source=social). Quanto (nos) dói a iliteracia, seja a do povo ou a da burguesia?
Os factos, os números e as consequências pessoais da baixa literacia referidos na intervenção “O direito a compreender” foram, para mim, tão perturbantes quanto reveladores. Parece-me, contudo, que este problema tem permanecido incógnito na sociedade, escondido e escurecido por uma certa invisibilidade social e mediática, a que se alia a “ignorância” envergonhada – e sem voz – das pessoas menos letradas. Esta obscuridade silenciosa em torno do problema da iliteracia traz-me à memória uma magnífica canção de Rui Veloso/Carlos Tê: “A gente não lê”. Vale a pena escutá-la, pungente, na pronúncia nortenha de Isabel Silvestre (www.youtube.com/watch?v=4BHdvDYyCVA) e recordar aqui alguns versos:

Ai, Senhor das Furnas,
Que escuro vai dentro de nós
[…]
E do resto entender mal
Soletrar assinar em cruz
Não ver os vultos furtivos
Que nos tramam por trás da luz
[…]
De que nos vale esta pureza
Sem ler fica-se pederneira
Agita-se a solidão cá no fundo
Fica-se sentado à soleira
A ouvir os ruídos do mundo
E a entendê-los à nossa maneira.

A canção é de 1982, mas continua dolorosamente actual para muitos portugueses. Só que agora já não é tempo, não, de ficar sentado à soleira… “e do resto entender mal”. É tempo de voltar à escola, de fazer da educação de adultos um desígnio nacional e, em muitos casos, uma prioridade pessoal. Que promissor seria se, no início do ano lectivo, em vez de lermos nos jornais “Ministério da Educação fecha 311 escolas primárias”, pudéssemos ler um alento novo, como: “Escolas primárias desactivadas reabrem portas para a educação de adultos” ou “Escolas primárias fechadas renascem como pólos de educação popular”. Olhemos à nossa volta: temos milhares de escolas fechadas, temos milhares de professores no desemprego, temos milhares de portugueses com baixa literacia. Mas, se não lermos pela mesma cartilha e se aprendermos a ver: temos espaços, temos gente, temos uma necessidade incógnita e ingente. Há aqui uma equação lógica que está por fazer, Sr. Ministro…

“Não basta saber ler que 'Eva viu a uva'. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.” Paulo Freire, Educação na Cidade.

“Não basta saber ler que ‘Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.” Paulo Freire, Educação na Cidade.

 

Num exercício de pura imaginação (talvez até de wishfull thinking), idealizo para Setembro de 2016 um regresso às aulas bem diferente: D. Luísa, a minha sogra, a voltar, receosa mas radiante, à escola da aldeia (há anos fechada) para completar a 4.º classe que há mais de meio século ficou por fazer. “Primeira lição”: na nova cartilha, Luísa leu, leda e leve, o verso vero do Ivo.
Segunda lição: “A gente não lê”… mas sabe muito da vida: conhece as marés, os frutos e as sementeiras; os ofícios, o suão e os animais; o dialecto da terra. E também sabe “de boca em boca passar o saber / com os provérbios que ficam na gíria”. Ora, todo este saber, ou o de manejar agulhas, máquinas e bandejas; vides, tijolos ou ovelhas, é material escolar necessário e suficiente para, a partir desses contextos pessoais, co-construir novas cartilhas, soletrar outras lições e gerar aprendizagens diferentes na educação de adultos.
Terceira lição: viagem vocabular e pessoal pela “Calçada de Carriche”, de António Gedeão: “Luísa, sobe / sobe que sobe / sobe a calçada.” D. Luísa não é desgraçada – pode subir outra calçada: a da educação ao longo da vida.
Penúltima lição: Aprender até morrer!